Reportagem: Como Farfetch e Outsystems estão a mudar o (nosso) mundo

    Valem mais de mil milhões de euros – daí terem o título ‘unicórnios’ – e são empresas portuguesas onde a tecnologia e os conceitos criados pelos seus fundadores têm um potencial que parece ilimitado. Fomos ver como vão mudar as nossas vidas.

    (esta é parte da reportagem publicada no primeiro número da revista Insider, que saiu em julho – alguns dos números podem estar desatualizados, até porque a Farfetch continua a crescer a ritmo impressionante e pediu recentemente para entrar na bolsa de Nova Iorque; pode ler ainda sobre o talento da Outsystems; sobre o talento da Farfetch; descubra ainda o quartel-general com escorregas da Farfetch).

    Um “F” pequeno é a única coisa que revela a entrada simples e modesta dos escritórios da marca de e-commerce de moda de luxo Farfetch, em Leça do Balio. A sala de espera onde só está uma rececionista, tem um sofá grande e dois ecrãs-espelhos, onde passam imagens da Farfetch, não só do site mas também do projeto da Loja do Futuro. Mas a surpresa acontece depois de subirmos as escadas que dão acesso aos escritórios onde trabalham perto de mil pessoas – mais de 800 engenheiros. O que vemos é um espaço gigantesco – um armazém da indústria têxtil adaptado aos tempos modernos –, onde não faltam Mercedes clássicos decorados a flores, uma casa de madeira na árvore, mini-golfe, escorregas vermelhos para descer do segundo para o primeiro piso, bolas de ioga e muitas paredes escritas com fórmulas ou organização de tarefas. Num dos dias que por lá passámos para esta reportagem, vimos algo improvável.

    Centenas de funcionários reunidos no auditório, que é aberto e fica ao centro do espaço, a ver o jogo do Mundial Portugal-Marrocos (1-0). Se os portugueses vibravam com intensidade, os funcionários das outras 21 nacionalidades do armazém-escritório viam a partida com curiosidade e aproveitavam para enviar mensagens a amigos em línguas como holandês, chinês ou cirilico. A Farfetch, com clientes em 190 países e 900 marcas de roupa de luxo parceiras, ganhou o estatuto de unicórnio (por ter valor de mercado acima dos mil milhões de dólares) em maio de 2015. Este ano celebra a sua primeira década com um crescimento exponencial de funcionários (76 por mês e tem mais de 2300), escritórios (tem 13 espalhados pelo mundo e vai abrir um segundo em Lisboa ainda este ano), crescimento de receitas anual de 70% e ambições tecnológicas incríveis, como veremos mais à frente.

    Cerca de 335 km a sul, fica a sede da Outsystems, em Linda-a-Velha. Começaram há 17 anos com um pequeno escritório na mesma localidade e sonhos gigantes de simplificar a forma como se programa. Continuam em Linda-a-Velha, hoje a ocupar quase por completo o edifício Central Park, dispersos por vários pisos. Por lá não faltam sofás e mesas para confraternizar, prémios e reconhecimentos de parceiros internacionais (incluindo a Microsoft) em estantes, fotografias das festas do escritório e até um aquário gigante.

    Foi ali que vimos o seu CEO e fundador, Paulo Rosado, com uma pólo branca com o nome da empresa, a questionar um funcionário que não conhecia sobre quem era e o que fazia. “Aqui todos podem e devem perguntar porquê, é assim que inovamos”, diz-nos Rosado. Ali, tal como na Farfetch, também se sente o mantra de que os funcionários, o seu bem-estar, talento e motivação é o motor para a empresa crescer sem parar.

    A Outsystems inovou cedo demais e enfrentou por duas vezes o risco de falência, mas a determinação e certeza de Paulo Rosado, de que tinham um software capaz de transformar o mundo, falou mais alto. Em junho deste ano, um financiamento de 360 milhões de dólares deu-lhe o estatuto de unicórnio. Têm escritórios em 54 países, mais de mil clientes em 42 indústrias diferentes, 812 colaboradores (500 em Portugal), têm crescido 62% anualmente e até final do ano vão chegar aos mil colaboradores.

    Dois gigantes tecnológicos recentes, com origem nacional e dimensão planetária têm os olhos do mundo neles. Embora um opere na moda de luxo e o outro no mundo das plataformas de software, têm várias coisas em comum, muitas delas devem-se à visão e à cultura criada desde o primeiro dia pelos seus fundadores e CEO, José Neves (Farfetch) e Paulo Rosado (Outsystems).

    Mudar a vida de profissionais e clientes

    “A nossa tecnologia está a transformar a vida de muitas pessoas, de várias formas”. Paulo Rosado não tem dúvidas e é com entusiasmo que começa a explicar esta temática falando dos seus próprios funcionários: “uma das principais motivações de quem trabalha cá é termos resultados e um karma muito positivo”. Além disso, estão “a mudar por completo a vida de quem trabalha nos departamentos de informática”. Pessoas bem pagas, mas com “vida desgraçada”, que fazem trabalho que não é bem aceite e “só reparam neles quando as coisas correm mal”.

    E o que a tecnologia da Outsystem tem permitido? “Altera por completo a relação entre o departamento de informático e o negócio em si, passam a ser parceiros e já não vemos os tipos das TI (Tecnologias de Informação) a esconderem-se nos corredores com medo que alguém lhes peça alterações”. Ou seja, esses técnicos passam a ter agilidade e tempo para “ajudar a empresa a ser melhor” e é “gratificante ver como as empresas mudam” depois de optarem pelo sistema Outsystems.

    Um dos exemplos foi o trabalho para um banco inglês, que implementou o seu sistema de Homebanking – do site à app – em Outsystems. “Passaram a conseguir publicar uma funcionalidade nova por dia para os clientes, algo inédito num banco”. Depois têm 10% de clientes que funcionam como ensaiadores beta, experimentam e dizem o que gostam ou não (tudo pela app). Isto só é possível porque “o sistema é ágil e rápido”, ou seja, o banco tem “uma vantagem comercial importante” e ainda cria “uma relação especial com os clientes” que se sentem integrados na inovação e beneficiam dela.

    Outro cenário onde a plataforma da Outsystems fez a diferença foi com uma ONG chamada Americares, que organiza os medicamentos em zonas de catástrofes naturais. “Precisavam de uma aplicação para tablet que permitisse fazer a gestão mesmo sem internet. São aplicações que demoram 18 meses a estarem prontas e podem custar um milhão de euros por serem feitas por empresas externas. Com o sistema Outsystems, a Americares fez a app em seis semanas, sem ajuda externa e só com “uma pessoa a trabalhar”. Ficaram operacionais a tempo da época dos furacões e da catástrofe no Haiti.

    Comprar roupa, a coisa mais fácil do mundo 

    A Farfetch não está só a mudar a forma como se compra moda de luxo no mundo. Na verdade, o geek assumido Cipriano Sousa e primeiro engenheiro da empresa de que é hoje CTO, ainda antes dela ser oficial, em 2008, diz-nos mesmo: “não somos um site de e-commerce, somos uma plataforma com muitas aplicações em backoffice, uma rede de parceiros e uma base de dados e de data science impressionante”. E o que é isso significa? Está relacionado com a visão de ter uma “empresa global, que existe na mente de José Neves desde o primeiro dia e está enraizado na cultura”, diz Cipriano Sousa.

    O CTO da empresa admite que é na ligação entre o online e o offline (as lojas físicas ou boutiques) em que se distinguem. “Fomos nós que iniciámos esse movimento que agora é copiado”. O responsável dá o exemplo da China. “Um dos nossos trunfos é fazermos bem a ligação do global com o local, ao contrário de Amazon e outros. Temos feito isso na China, onde temos um escritório a pensar nesse mercado já com 40 engenheiros a trabalhar e vão ser 100 até ao final do ano”. Cipriano garante que a experiência nas lojas pode melhorar muito e tornar-se muito semelhante ao que já há nos sites de e-commerce. E lembra: “só 10% da moda a nível mundial é vendida online”.

    “O cliente pode comprar online, mas levantar as compras na boutique mais próxima”, ou ir à boutique experimentar e receber em casa. É aí que entra o conceito de Loja do Futuro (veja mais na caixa), que já está a ser testado há algum tempo com consumidores reais na loja da Farfetch em Londres, Browns East, e para a qual a empresa tem já um grande cliente internacional – pode ser a Channel. “É indiferente se o processo começa online ou em loja, o que queremos é dar uma experiência fácil e prática”. Para isto têm estado a experimentar várias tecnologias.

    O uso de inteligência artificial vai aumentar, de forma a prever o que os clientes querem, mediante os seus gostos, “numa viagem ao mundo das compras o mais personalizável possível”, diz Hélder Dias, vice-presidente de engenharia, que em pouco mais de um ano viu a sua equipa crescer de 200 para 700 pessoas. Para isso têm neste momento 30 a 40 data scientists, a maioria em Londres. Mas vão ter bem mais em breve, até porque usam a ciência dos dados “em quase tudo”, do call center, aos algoritmos de sugestões de roupa, passando pela otimização da distribuição.

    Farfetch: Plataforma para liderar venda de moda mundial

    Mais do que uma marca do e-commerce da moda de luxo, a Farfetch quer ser uma plataforma global da venda de moda em geral. Cipriano Sousa não tem dúvidas: “em 10 anos podemos ser o sistema operativo da moda em geral, em que os parceiros, marcas e boutiques usam a Farfetch como as apps usam a Apple e o iOS do iPhone para crescer”. Ou seja, a plataforma quer resolver o problema de várias empresas quando querem crescer e vender para outras áreas do mundo, fornecendo o backoffice, pagamentos, o processamento de encomendas e envios e até o seu departamento de fraude. Neste momento 95% do negócio da Farfetch é o e-commerce da moda de luxo e 5% é o uso da plataforma por outras empresas. “Numa década acho que vai ser ao contrário, só 5% do negócio é que será da nossa loja online”. Uma ambição notável “à medida de José Neves”.

    Como é que vão fazer isto? O primeiro grande passo foi dado já este ano com a aceleradora de startups Dream Assembly. Onde de 150 candidaturas já surgiram várias startups parceiras que além de mentoria, querem usar a plataforma da Farfetch. Um desses exemplos é a Fashion Concierge, que usa uma janela de conversação e inteligência artificial (para já ainda com ajuda humana) para dar sugestões perfeitas ao cliente que escreve o que pretende. Essa startup foi adquirida pela Farfetch, pelo potencial que tem e essas ideias vão ser implementadas no site da marca. “O objetivo final é termos empresas, startups ou pessoas individuais a desenvolver produtos e soluções em cima da nossa plataforma e já há estrutura montada para por ao dispor destas empresas. Quanto mais eles crescem, mas a Farfetch cresce como plataforma.

    Cipriano Sousa lembra que desenvolveram a plataforma “para não ficar presa à moda” e “poder ser aberta”. O conceito é terem “o mundo a desenvolver aplicações para a Farfetch”. Do ponto de vista de inovação “isto é uma excelente aposta, porque nós não temos de fazer tudo e inventar tudo”.

    Loja do Futuro da Farfetch é laboratório para todos 

    A Loja do Futuro pretende remover o atrito que muitas lojas têm, face ao online. Em primeiro lugar, a pessoa pode ser reconhecida (se o desejar) quando entra na loja – para já pelo seu telemóvel – e tem um tratamento adequado ao seu perfil e aos seus gostos, que a plataforma Farfetch já conhece. Pode tocar num produto e, com ajuda do telemóvel, ter informação imediata sobre se há outras cores disponíveis, outros tamanhos em stock (se não houver na loja, pode encomendar logo online) e até o aspeto que pode ter já vestido – pode ver um pequeno vídeo daquela peça a ser usada numa passerelle, num conceito chamado prateleira infinita.

    Depois surge o conceito de Espelho Mágico cujo hardware, curiosamente, é feito noutra empresa portuguesa. É nesse espelho que é um ecrã tátil e está no provador, que o cliente pode pedir ao sistema outras recomendações com base no seu perfil. Também pode enviar fotos aos amigos pelo Messenger a pedir conselhos e fazer logo o check out, pagar através do telemóvel e pedir para entregar em casa. É uma operação de segundos, até porque o sistema já sabe a morada certa. O software desse espelho é feito pela Farfetch, que usa tecnologia NFC de emparelhamento com o telemóvel para reconhecer de forma direta o cliente.

    Outsystems: tecnologia que quebrou muros

    O sistema Outsystems tem atuado como ferramenta de software cada mais ampla, que permite que os programadores façam sistemas (da faturação, à gestão de recursos humanos, passando por portais online até aplicações móveis) feitos à medida de cada empresa de forma ágil e muito mais rápida do que com sistemas tradicionais. Tem sido o chamado low code (código básico) que distingue a empresa liderada por Paulo Rosado, que desde 2001 tem tentado pensar “fora da caixa” em prol da simplificação de processos, numa escala que Rosado chama de “revolucionária” e que permite tornar a mudança e a inovação constante muito mais fácil e ágil.

    Acabou por ser a urgência das aplicações móveis terem de reagir à mudança de forma constante que “também fez de nós aquilo que somos hoje”, admite Gonçalo Veiga, diretor de experiência de produto da Outsystems. Rosado avança que as equipas que trabalham com Outsystems são, por normal, quatro vezes mais pequenas e pode-se poupar até 20 vezes mais em custos, até porque a plataforma permite “colmatar falta de experiência do programador e resolve algo que poucos programadores dominam, que é a área da segurança do sistema”. Além disso, permite tornar um sistema pensado para 50 pessoas, num sistema para cinco milhões com poucas alterações.

    Há várias razões para a codificação ser difícil. Um software quando é construído, é feito em seis níveis ou tecnologias diferentes. Quando se faz uma alteração numa, o impacto que tem nas outras tem de ser alterado à mão. Há uma análise de dependências grande.

    A plataforma da Outsystems unifica os seis níveis de construção de um software, “dentro de uma linguagem ou ambiente visual muito fácil de perceber”. Por isso, “cada vez que há uma alteração num dos pontos, o sistema autocorrige os outros”. Rosado explica que um sistema tradicional leva “11 milhões de códigos Java, enquanto em Outsystems só tem cerca de três mil objetos visuais” e isso permite “o entendimento de um grande sistema como algo muito mais fácil, porque há muito menos coisas para perceber”. Essa vantagem torna que a alteração de um software não esteja dependente dos programadores que o fizeram, como acontece nos sistemas tradicionais que ficam projetos órfãos: “em Outsystems qualquer um pode pegar no sistema e fazer alterações, sem ter praticamente de começar de novo”.

    O diretor de produto, Gonçalo Borrêga, na empresa desde 2008, garante que o produto tem mudado pouco ao longo dos anos. “Sempre nos mantivemos fiéis à visão inicial, que é muito abrangente e as bases da tecnologia são as mesmas desde 2002”, diz o responsável, que admite que as mudanças no mercado nos últimos anos têm trazido “pressão sobre as empresas para de modernizarem” e, isso, fez com que o nosso sistema fosse cada vez mais apetecível. Já Paulo Rosado acrescenta que “só aqui há quatro anos é que o mundo percebeu que é este o caminho e se tornou standard”.

    Para tudo isto, foi necessário quebrar um muro que parecia para muitos intransponível e atrasava muito a construção de software e a sua mudança. É esse o caso do chamado DevOps, algo que a Outsystem diz ser a percursora a nível mundial. E o que é? Trata-se da unificação entre o desenvolvimento e as operações, duas áreas na construção de um software que eram separadas e, na plataforma Outsystems, estão juntas. “É tão radicalmente diferente do que se fazia, que em muitos casos há processos que demoravam duas semanas, que em Outsystems são feitos em minutos.

    Um dos exemplos da eficácia do sistema foi logo num dos primeiros grandes clientes em Portugal. A Brisa recorreu ao Outsystems para fazer o seu sistema de gestão da Via Verde e dos portageiros. Depois de terem tido um orçamento do mesmo projeto para dois anos de trabalho, fizeram em Outsystems em apenas seis meses. “Temos feito vários projetos que foram considerados impossíveis de resolver e resolvemos com sistemas mais ágeis do que nunca”. Empresas como a Toyota, um dos grandes clientes da empresa, têm problemas graves com softwares antigos em centenas de projetos que custam dezenas de milhões de euros. “Conseguimos chegar ali e reduzir tempo e custo em 75%”.

    Já este ano, a empresa abriu um centro de inteligência artificial (IA) em Linda-a-Velha. O objetivo é “automatizar ao máximo um conjunto de passos”, o que vai permitir antecipar aquilo que os utilizadores querem, tanto na perspectiva de quem as desenvolve como a do utilizador final”, explica Gonçalo Veiga.

    Para os próximos 10 anos, Paulo Rosado não tem dúvidas: “vamos crescer muito mais porque o problema do software é gigantesco, também queremos executar vários planos de ideias que temos”. Daí que veja na IA “um potencial incrível”. “Não podemos revelar, mas vamos lançar já este ano na plataforma bons exemplos de inteligência artificial”. O CEO da Outsystems vê a sua plataforma que insiste, está na “cloud”, como um canivete suíço, repleto de hipóteses e usos. “Agora estamos a começar a dizer aos clientes como podem usar as várias funcionalidades e vamos aumentar os serviços agregados nesta mega plataforma”.

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