Problemas de privacidade, fake news, sites bloqueados, manipulação do comportamento dos utilizadores, ciberbullying, ameaças à democracia e inclusive mortes por causa do que acontece online. A World Wide Web mudou a mundo, mas a que preço?
Por Rui da Rocha Ferreira com João Tomé
“A internet não é nada daquilo que nos foi prometido”. Quem o diz é Emmanuel Schalit, fundador da Dashlane, empresa responsável por uma plataforma de gestão da identidade online. “Devia ser partilhas infinitas, acesso a tudo, mas agora está a tornar-se numa série de fortalezas em todo o lado porque [o mundo online] é demasiado perigoso. Isso é o que me assusta”.
A referência diz respeito ao grande poder que está nas mãos de um pequeno número de tecnológicas – empresas como a Google, Facebook e Amazon, por exemplo – e a forma como fazem dinheiro, através do conhecimento que têm da vida digital de milhares de milhões de utilizadores.
“O que mais me assusta é que olhámos para o problema e está a ficar cada vez pior. A não ser que enquanto indivíduos comecemos a tomar ações, não sei como é que a internet vai ser daqui a 20 anos, não sei se vai haver uma internet global na qual está toda a gente conectada”, sublinha o francês.
Quando Tim Berners-Lee entregou, no dia 12 de março de 1989, na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN na sigla em inglês), uma proposta para gestão de informação do centro de investigação, estava também a entregar uma das maiores invenções de sempre e o sonho de ligar todos num mundo digital.
Nascia, naquele dia, a World Wide Web (WWW), um sistema de distribuição de informação e conhecimento que tem por base as hiperligações. Hoje pode parecer simples à luz da realidade que conhecemos, mas na altura foi revolucionário.
“Devíamos trabalhar para um sistema de informação universal ligado entre si, no qual a generalidade e a portabilidade são mais importantes do que técnicas gráficas bonitas ou instalações extras complexas”, lê-se na versão original da proposta, atualmente preservada como um artefacto digital de grande valor histórico.
O resultado final deveria ser “atrativo o suficiente”, defendia Berners-Lee, para que o sistema fosse muito além do objetivo para o qual foi concebido. Nem ele sabia o quão estava certo.
Mas o mundo online aberto, descentralizado e informativo que Tim Berners-Lee imaginou há 30 anos evoluiu de tal maneira que além de mudar a forma como as pessoas comunicam entre si e de terem sido criados negócios que antes pareciam inimagináveis, também teve as suas consequências negativas.
É o próprio ‘pai’ da web quem o diz múltiplas vezes. Mas para esta ocasião recuperamos o discurso que fez em Lisboa, durante a sessão de abertura da Web Summit 2018.
“Se ligasses as pessoas e conseguisses manter a web aberta, as pessoas fariam coisas boas. O que poderia correr mal? Todo o tipo de coisas: fake news, problemas de privacidade, temos pessoas que são perfiladas ao ponto de serem manipuladas”, sublinhou na sua passagem recente por Portugal.
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Se ninguém duvida de quão foi importante a World Wide Web para o desenvolvimento do mundo e da sociedade, são cada vez mais as pessoas que pedem uma mudança no mundo digital, muito por causa do distanciamento que existe face ao conceito original.
Os internautas passam a maior parte do seu tempo em plataformas como o Facebook, Instagram ou YouTube, cujas regras são definidas por empresas à procura de lucro. As vidas digitais não são assim tão privadas, como provou Edward Snowden, e como provam todo um conjunto de escândalos que já surgiram entretanto.
As maiores plataformas digitais servem também para a disseminação de notícias falsas, teorias da conspiração e conteúdos abusivos. O perfilamento de utilizadores chega a ser tão perspicaz que há empresas que sabem quando um adolescente está a sentir-se deprimido, apenas pelas interações que faz no mundo digital.
Fenómenos políticos como a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA ou o referendo da saída do Reino Unido da União Europeia foram manipulados e tudo porque aos eleitores foram servidos conteúdos enviesados, falsos e inflamatórios.
Entrar num website é, talvez, encontrar um aviso de bloqueio, seja por ordem judicial, seja porque o dono não quis cumprir as regras estabelecidas pelo novo regulamento europeu da proteção de dados (RGPD). Entrar num site, hoje, é aceitar termos de utilização gigantes e em linguagens pouco acessíveis e ficar depois à mercê daquilo que se aceitou.
Os discursos de ódio, abusivos e que incitam à violência também não são difíceis de encontrar. O ciberbullying é uma realidade, para jovens e adultos, que já levou ao pior dos cenários.
Estas são todas situações que nos últimos anos parecem estar a ganhar terreno, não só em número, como também em gravidade. É esta a internet que o mundo quer para o futuro?
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Emmanuel Schalit considera que “as pessoas que beneficiam do facto de a internet estar estragada já não é um miúdo numa garagem, são organizações bem financiadas, estruturadas e cheias de recursos”. “A web não seria o que é sem a Google, o Facebook e a Amazon. Mas estamos a começar a ver porque algumas das coisas que fizeram com os dados dos seus utilizadores são problemas fundamentais e problemas que tocam não apenas os negócios, mas que tocam a democracia”.
Já Celso Martinho, pioneiro na internet em Portugal e atual líder da empresa de inovação e investimento Bright Pixel, considera que é preciso “arranjar formas de voltar a pôr nas mãos do consumidor final o poder de ter o controlo dos seus dados, da sua privacidade e das suas comunicações e deixar de depender de Facebook, entidades centrais, governos, operadores de telecomunicações e outras coisas que estão pelo meio da infraestrutura ou das limitações jurídicas, ou outras que existam”.
Quando se fala em soluções para reparar este “aranhiço que é a internet hoje” – palavras de Celso Martinho -, a regulação surge sempre como uma hipótese de resposta rápida, mas por vezes o caminho mais curto nem sempre é o melhor.
“Essa é a minha principal preocupação, que pequemos por excesso em regular as empresas que estão sob a alçada da União Europeia não regulando aquilo que são a maior parte dos fornecedores que não estão sob a alçada da UE”, desabafa António Miguel Ferreira, outro pioneiro da internet em Portugal e atual diretor executivo da Claranet Portugal.
“Tenho grandes receios da regulação, acho que quando a regulação se mete no mercado normalmente é para atrasar a evolução desse mercado. Em particular da regulação europeia, que ao contrário da americana, ainda atrasa mais o desenvolvimento desse mercado”.
O RGPD acabou por ser um pouco assim: criado para colocar um travão nas grandes empresas, também trouxe dores de cabeça às mais pequenas.
Para António Miguel Ferreira outra grande preocupação está na chamada desinformação. “A internet é um meio de acesso à informação muito fácil, mas também é um meio de acesso a informação falsa muito fácil. O problema das fake news é uma preocupação. Hoje em dia lê-se o título de uma notícia e as pessoas, com tanta informação, tendem a ler só os títulos e depois não leem o contexto. Podem estar a ler de um meio que não é minimamente credível. Isso faz muito pior à sociedade do que o facto de haver grandes empresas tecnológicas americanas que, enfim, dominam uma grande parte da internet”, considera.
Celso Martinho concorda que este tópico em particular é “muito negativo”, mas que acaba por ser um processo no qual as pessoas aprendem a ser “mais criteriosas e a terem mais escrutínio sobre tudo o que leem e consomem na internet”.
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Numa altura em que a World Wide Web parece estar estragada, ainda há solução? Cada um à sua maneira, mas todos acreditam que sim.
António Miguel Ferreira diz que este é um tema, “como em tudo na vida” que “depende das pessoas” e é por isso que defende a necessidade de “haver uma renovação do sistema político para podermos também ter novas gerações a lidar com este problema”. “Precisamos de políticos de nova geração e vai demorar 10 a 20 anos a tê-los lá, é um problema geracional. O mundo está a mudar muito depressa e depois não conseguimos acompanhar”.
Já para Celso Martinho, parte do caminho terá que ser feito tal como Tim Berners-Lee o tinha imaginado inicialmente, descentralizado. “Para mim tem muito a ver com reinventar tecnologia, descentralização, criar uma espécie de segunda internet, em cima da internet. Já temos uma segunda internet que é pouco conhecida, a dark web: é fazer uma versão da dark web, mas versão mais saudável, uma bright web. Só assim podemos voltar a ter a inovação exponencial que tínhamos há 10 ou 20 anos. Hoje já começa a ser inovação incremental, os grandes são cada maiores”.
Emmanuel Schalit termina, por seu lado, com uma analogia. “Pensa na tua casa, pensa em fazeres 200 cópias da tua chave e sempre que alguém vem para te entregar alguma coisa, tu dás-lhe uma cópia das chaves de tua casa porque é mais conveniente. No mundo real, a maioria das pessoas nunca faria isso. Não darias a toda a gente uma cópia das chaves de tua casa. Ainda assim, estás a fazê-lo no mundo digital, porque ainda não te apercebeste o que eles podem fazer isso”.
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