Fernando Pereira: O homem na cadeira de sonho da inteligência artificial

    Quando entrou na Google, Fernando Pereira estava focado “em um ou dois projetos”. Agora, enquanto vice-presidente, coordena desenvolvimentos para os maiores serviços da empresa, como o YouTube e o Google Assistant.

    Durante uma das conversas com a coluna inteligente Google Home, um utilizador partilhou com a assistente digital que era alérgico a amendoins. Quando um dia mais tarde pediu à coluna uma sugestão de uma receita e os amendoins faziam parte da lista de ingredientes, não ficou muito contente.

    A história chegou até Fernando Pereira. “É uma inferência muito simples, mas que as nossas máquinas não conseguem fazer de forma fiável”, explica. “O nível de compreensão que os computadores têm daquilo que as pessoas pedem e dizem é extremamente limitado”.

    O grande desafio, diz, está na forma como a complexidade do mundo real e das experiências das pessoas são refletidas em termos linguísticos. “É um dos aspetos mais profundos do significado das palavras e das frases. Esse nós ainda não atingimos e não vamos atingir, ainda precisamos de saber muito mais, experimentar muito mais”.

    A frase é poderosa, sobretudo vinda do vice-presidente e líder de investigação em linguagem natural daquela que é, para muitos, a empresa mais avançada do mundo em inteligência artificial (IA): a Google. Fernando Pereira está numa posição no mundo da IA que pode ser considerada como a ‘cadeira de sonho’.

    Quem é Fernando Pereira?

    O jazz e os sistemas de som de alta fidelidade são uma paixão de Fernando Pereira. Quando era criança, sonhava ser cientista. Cresceu em Alvalade, em Lisboa, e não foi longe de casa que começou o percurso académico. Ingressou no Instituto Superior Técnico, no curso de Engenharia Eletrotécnica, que viria a trocar pela Matemática, na Faculdade de Ciências, onde concluiu a licenciatura. Doutorou-se em IA na Universidade de Edimburgo, na Escócia, em 1982.

    Em 2001, a Google estava literalmente de olho nele. E novamente em 2006. O português sentiu que não era o momento – não queria influenciar os estudos dos dois filhos. Em 2008, finalmente, decidiu-se. “Se queria pôr em prática muitas das ideias que tinha, a Google seria o ambiente mais favorável”.

    Diz que não foi o grande volume de dados que a Google agrega o principal chamariz para aceitar o convite da tecnológica, mas sim a forma como as pessoas interagem com os seus serviços. “Não é tanto a questão do volume a grosso, mas a variabilidade, o tipo de perguntas que as pessoas fazem, o tipo de interesses que elas têm e querem ver satisfeitos através da interação com um sistema de pesquisa ou ver vídeos que lhes interessam”.

    O papel de Fernando Pereira mudou muito na última década. No início estava focado “em um ou dois projetos”, agora, enquanto vice-presidente, são as tarefas de gestão que lhe consomem mais tempo.

    “Houve uma transição de um papel que era mais técnico, menos organizacional, para um que é mais organizacional. Ainda é técnico, mas, claro, com uma equipa tão grande, tenho que deixar a parte técnica muitas vezes às pessoas que estão nessa parte da equipa, que estão focadas nesse problema específico”.

    Atualmente coordena investigadores nos EUA, Canadá, Japão, França e Suíça, entre outros países onde há centros de desenvolvimento da gigante de Mountain View. “O meu grupo inclui muita gente de informática, mas também inclui linguistas e inclui alguns físicos – já agora, os físicos são sempre muito interessantes na sua abordagem de problemas computacionais e matemáticos”, atirou.

    Especialista em processamento de linguagem natural, o português, de 66 anos, tem um dos papéis mais importantes no ecossistema da empresa. Se o YouTube e o Google Assistant percebem cada vez melhor os utilizadores, a influência de Fernando e da sua equipa é inegável.

    A influência do português

    Recentemente a Google espantou tudo e todos ao demonstrar como um robô, com uma voz e nuances dignas de um humano, conseguiu fazer uma marcação por telefone num cabeleireiro.

    Para a construção desta ferramenta, conhecida como Google Duplex, contribuiu também o trabalho de investigação que Fernando Pereira e a sua equipa – que ronda as 600 pessoas – estão a fazer. O especialista português lidera a criação de algoritmos e modelos estatísticos que depois são combinados com os desenvolvimentos de outras equipas – a conjugação de esforços é fundamental na Google. Se houver mercado, então temos um produto novo.

    “À medida que temos vindo a desenvolver as nossas técnicas, estamos a progredir, lentamente, na direção de podermos atingir mais o significado das palavras e das frases, como elas são combinadas, e a relação entre as descrições dos objetos”, explica.

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    O único serviço que é desenvolvido na totalidade pela equipa de Fernando Pereira é o Google Translate. Enquanto falava à Insider, contou como estava satisfeito por ter visto que durante o Mundial de Futebol, na Rússia, esta tinha sido uma ferramenta indispensável para muitos turistas.

    “A possibilidade de usar o telemóvel, falar em português e sair em russo, e a outra pessoa usar o telemóvel, falar em russo e sair português, se pensarmos bem, tem um enorme potencial”.

    Mas o que hoje parece uma tecnologia revolucionária vai ter, na opinião do português, um impacto ainda maior nas gerações mais novas. Outra história que Fernando conheceu foi o de uma criança que estava a usar a coluna Google Home como ajuda nas primeiras aulas de espanhol. ‘– Hey Google, como se diz adeus em espanhol? – Adiós!’.

    “Este tipo de interação talvez vá mudar a forma como as novas gerações aprendem, desenvolvem e criam o seu próprio modelo do que é a realidade social e técnica. É aí que estão as mudanças mais profundas: nas novas gerações, como facilitamos a sua aprendizagem espontânea”, explica.

    Os desafios que se seguem

    Fernando Pereira considera-se um otimista relativamente à IA. Diz que não está preocupado com os temores que existem à volta desta tecnologiaa, pois sabe como ela funciona e é construída – o que não acontece com a esmagadora maioria da população mundial nesta fase. “É essa questão, é a projeção de medos muito profundos sobre coisas que parecem ter a forma de um ser independente e potencialmente perigoso, quando na verdade estes sistemas são extremamente limitados no que podem fazer e são programados com grandes restrições naquilo que lhes é permitido fazer”.

    Mas sim, há questões que o preocupam, como o enviesamento mostrado por alguns algoritmos relativamente à informação que devolvem ao utilizador.

    “Dedico muitas horas a esse problema. Quando nós olhamos para esses enviesamentos algorítmicos, temos que pensar que o verdadeiro enviesamento é nas estruturas sociais, mas depois é refletido pelo algoritmo. Temos de pensar quais são as decisões sociais, políticas e éticas que devem ser aplicadas para eliminar esses enviesamentos”.

    A tecnologia pode ajudar a equilibrar uma balança que socialmente está desequilibrada há centenas de anos. Criar grupos de análise que sejam abrangentes (em termos de idade, sexo e região) é uma forma de combater este problema.

    Outro elemento fundamental é a questão da transparência – não basta que as máquinas sejam inteligentes, têm de se saber explicar. “Penso que é importante que todas as máquinas providenciem explicações sobre a sua função”.

    “Estamos a investir muito em como podemos fazer esta tecnologia mais capaz de se explicar a si própria. Não é simplesmente fazer algo – é dizer porque é que o faz. Isso vai facilitar a interação, o uso e vai tornar as pessoas mais confiantes, pois percebem como a tecnologia está a ser usada apropriadamente”.

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    Mas o grande problema acaba por ser outro – e muito mais ‘simples’, como explica o investigador português. “Falta conhecimento. Parte do que nos falta é conhecimento suficiente de como é que a língua se relaciona com toda a experiência humana e como é que essa relação pode ser traduzida de uma forma computacional para permitir a máquina interpretar o que a pessoa quer e ajudá-los”.

    Fernando acredita que nos próximos anos “o desenvolvimento [dos assistentes digitais] vai ser muito menos dependente de uma língua específica” e questionado sobre quando podemos esperar o Google Assistant em português europeu, o responsável disse que não podia fazer promessas, mas que “estamos a ir nessa direção”.

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    Em 2017, no encontro anual de programadores, a Google anunciou que a sua principal prioridade deixaria de ser os dispositivos móveis e seria a inteligência artificial. À medida que este domínio ganha maior relevância dentro da Google, pode um dia Fernando Pereira chegar ao cargo de CEO de uma das maiores empresas do mundo?

    “Não sei. A minha vida já tem menos aspetos técnicos do que eu gosto”, começa por dizer. “Na Google tenho espaço para criar muitos projetos diferentes, para experimentar, para fazer coisas novas”. Fernando confessa que nunca imaginou ocupar um cargo de tão grande importância, mas a hierarquia não é algo que lhe tira o sono.

    A sua preocupação é outra: “O que me preocupa é ter a certeza de que o que fazemos na Google tem um valor positivo para o mundo”.

    *Este artigo faz parte de um trabalho originalmente publicado na edição de agosto/setembro de 2018 da revista Insider com o título ‘Cérebros do Futuro’