Divisão de inteligência artificial do Facebook contratou filósofos “para ajudar a dar perspetiva” às máquinas. Paddy Cosgrave e Viriato Soromenho-Marques analisam a nova era tech filosófica.
O que é que as ciências sociais e a filosofia têm que ver com a era digital e, em particular, o Facebook? “O que vemos agora é que tem tudo que ver”. É essa a conclusão de Joaquin Quiñonero Candela, diretor de machine learning da divisão de inteligência artificial (IA) do Facebook e professor da Universidade de Cambridge, com quem falámos num evento em Paris. O espanhol de 40 anos, que já passou pela Microsoft, explicou-nos que está a reunir “uma equipa de cientistas sociais e filósofos para ajudar a fazer uma inovação responsável para dar perspetiva e responsabilidade à inteligência artificial”.
Jérôme Pesenti, diretor do Facebook AI, admite-nos que esta é uma preocupação séria da divisão de investigação da empresa, que funciona como uma universidade. “Esta era digital não vai ser só resolvida com tecnologia, precisamos de ver o problema de forma mais ampla e com pessoas que percebam de lei, mas também de filósofos para darem uma perspetiva mais global aos novos caminhos que estamos a trilhar.” Dessa forma, é com “entusiasmo” mas também com preocupação que o francês aborda os valores que as máquinas e os algoritmos devem ter em redor da ética e da justiça. “São problemas complexos que não serão resolvidos só com engenheiros.”
Os dois responsáveis não quiseram explicar quantos filósofos já contrataram, mas Joaquin admite que as discussões não são só focadas na forma como a inteligência artificial, através das redes sociais, já está a influenciar de forma diferente a sociedade atual, é mais ampla. “Vivemos num mundo onde a IA aumenta a produtividade das pessoas e a forma de comunicarem, de tal forma que surgem novas questões e novas decisões para tomar.” Dá o exemplo do rendimento mínimo garantido, que começa a voltar a ser falado e dá nova perspetiva à pergunta eterna “qual o sentido da vida?”.
“A tecnologia está a obrigar-nos a fazer de novo questões antigas, com uma perspetiva nova, porque agora temos uma IA que desbloqueia obstáculos mas obriga-nos a resolver de novo a sociedade.” Resumindo, “a inteligência artificial está a tornar a filosofia importante outra vez”.
Futuristas e futurismo em alta
Um dos nomes em destaque nos últimos tempos é o filósofo, historiador e autor israelita Yuval Noah Harari. A forma como nos explica a evolução do mundo e para onde nos dirigimos têm-lhe trazido fãs inclusive nos líderes das grandes tecnológicas, mesmo quando não concordam com ele. Harari examina nos seus livros as possíveis consequências de um mundo biotecnológico futuro em que os organismos biológicos inteligentes – os humanos – serão ultrapassados pelas suas próprias criações – as máquinas.
É neste contexto que também entram os cada vez mais frequentes futuristas, “filósofos mais focados no que a tecnologia permite para o futuro próximo, ao contrário dos filósofos utopistas, que pensam na sociedade mais idealista e longínqua”, diz-nos o professor de filosofia da Universidade de Coimbra, João Maria André.
Um dos futuristas mais mediáticos e misteriosos – por ser raro dar entrevistas, embora tenha uma vasta influencia – é Raymond Kurzweil. O inventor e futurista norte-americano veterano já tem 71 anos e foi contratado em 2012 pela Google como diretor de engenharia – embora ninguém saiba ao certo as suas responsabilidade. Kurzweil é um conhecido defensor do chamado movimento filosófico transhumanista, que admite a transformação da condição humana atual usando tecnologias sofisticadas para expandir o intelecto humano. É ainda um dos promotores da chamada ‘singularidade tecnológica’, um ponto hipotético no futuro em que as máquinas vão ultrapassar por completa a inteligência humana. Esse conceito e a influencia de Kurzweil levaram à criação da Singularity University, que fornece cursos tecnológicos e tem um pólo em Portugal.
Paddy Cosgrave: “há um vazio filosófico neste momento”
Na sua génese, filosofia significa “amor pelo saber”. O termo foi cunhado há 2500 anos por Pitágoras, um filósofo e matemático da Grécia Antiga, numa era onde a cidade-Estado trazia mudanças profundas à sociedade da época. “Sempre que a sociedade foi radicalmente alterada os filósofos têm sido importantes e hoje, como aconteceu durante a Revolução Industrial, precisamos de ver a sociedade sob outra perspetiva”, diz-nos Paddy Cosgrave, CEO da Web Summit (pode ler mais no final desta entrevista).
Um interessado em história, Paddy dá o exemplo dos “filósofos morais” Adam Smith, David Ricardo ou David Humes, importantes na Revolução Industrial. E, agora, neste “momento charneira criado pela tecnologia”, “precisamos de novas regras para percebermos como podemos coexistir de forma pacífica num mundo de robótica e inteligência artificial”. Dessa forma, parece-lhe claro que “há um vazio neste momento”. “As nossas sociedades estão a ser viradas do avesso e achávamos que tínhamos chegado a uma espécie de fim da história, mas não, é um novo capítulo.”
Enquanto no passado era normal um filósofo ser também matemático, médico ou até poeta, hoje as especialidades estão mais delimitadas, mas “faz todo o sentido ter equipas multidisciplinares porque temos tudo a ganhar com perspetivas diferentes”, explica Jérôme Pesenti, vice-presidente do Facebook.
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Soromenho-Marques: “as máquinas aprendem rápido a colaborar”
O filósofo Viriato Soromenho-Marques admite que depois de ser marginalizada durante 100 anos, nos últimos tempos a filosofia ganha nova importância. “Começámos a ver filósofos a serem contratados para ajudar na colaboração entre as diferentes ciências, depois foi o sector bancário e financeiro que começou a usar filósofos para o brainstorming estratégico, agora chega a vez das grandes tecnológicas”. O cronista admite que nesta revolução tecnológica atual de IA e machine learning “o receio é de sermos ultrapassados pelos sistemas inteligentes sem haverem mecanismos de controlo”.
No entanto, o autor não espera milagres mesmo com filósofos, isto porque: “as máquinas têm um potencial muito maior do que nós no processamento de dados e porque, quando mais inteligentes são, mais percebem que serão mais poderosas se se unirem, colocando isso em prática”.
Já os humanos “não avançaram um polegar desde o homo sapiens”. O autor dá como exemplo a resposta às alterações climáticas, que tem sido “caótica e fragmentada, num mundo que se separa mais perante uma crise e tem líderes políticos analfabetos em tecnologia”. Opinião semelhante tem o futurista alemão Gerd Leonhard – defende que os políticos devem ter “uma espécie de carta em futurismo”.
Soromenho-Marques cita ainda o filósofo sueco Nick Bostrom, que acredita que no transhumanismo, ou seja, que a única forma para a humanidade sobreviver é ela própria fazer upload para a cloud e tornar-se máquina. O português lembra ainda as preocupações de Elon Musk sobre o potencial do IA poder dominar os humanos no futuro.
Mesmo que não concorde em toda a linha com visões mais categóricas como a de Bostrom ou de outros como Kurzweil, “há argumentos válidos que nos mostram o potencial ilimitado, para o bem e para o mal, que a IA terá no futuro”.
Apesar de admitir que “ninguém vai parar a inteligência artificial”, Soromenho-Marques espera que “a utopia criada agora com a tecnologia e que era inimaginável há 100 ou 200 anos, não se torne, no futuro, numa distopia”.
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