A partir de que idade é que as crianças devem ter acesso a telemóveis, tablets e computadores? Os especialistas respondem à pergunta, numa era em que a tecnologia já é usada para acalmar birras ou apenas para distrair os mais pequenos.
Nativos digitais e imigrantes digitais são dois conceitos sociológicos nos quais não se pensa no dia-a-dia. No primeiro grupo estão as pessoas que já cresceram com tecnologia – normalmente está associado a quem nasceu depois de 1980, os millennials; já os imigrantes digitais são pessoas que tiveram de fazer a transição e o processo de habituação a um admirável mundo novo – o da tecnologia.
Um dado relevante: os nativos digitais são, na sua maioria, os pais das crianças de hoje. E por que razão é que isto é importante? Porque estas crianças vão bem além do conceito dos nativos digitais, vivendo uma experiência ainda mais imersiva do que a dos pais.
Leia também | Storyball, o brinquedo inteligente que quer afastar as crianças dos ecrãs
E é precisamente a consciência tecnológica destes últimos que os leva a questionar: a partir de que idade é recomendável uma presença tech na vida dos mais pequenos?
A verdade é que a tecnologia está cada vez mais presente na vida das crianças, com acesso a smartphones, dispositivos de realidade virtual e tablets – talvez o gadget que mais vezes é citado como um motivo de birras ou simplesmente de distração.
Para o pediatra Paulo Oom, “os ecrãs são amas digitais que muitas vezes só servem para entreter”, mas que “não conseguem ser superiores a ter um adulto a interagir com a criança”.
“Não deve haver pressa no uso do ecrã”, adverte o especialista, defendendo que a recomendação passa por evitar os meios digitais nos primeiros anos de vida. “Até aos 2 anos, o pensamento simbólico é muito imaturo, aquilo que a criança vê no tablet não consegue aplicar na sua vida normal, no dia-a-dia, exceto se for complementado por um adulto.” E, mesmo a partir dessa idade, há limites: “Um tablet não consegue perceber se uma criança está a ficar frustrada com a brincadeira, não há ainda uma inteligência artificial para conseguir lidar com a frustração.”
O pedopsiquiatra Pedro Strecht, que publicou recentemente o livro Pais sem Pressa, concorda com a visão de que, até aos dois anos, a tecnologia não deve ser um ponto central da vida. “Nessas idades, as crianças estão em fase de desenvolvimento de outras formas de comunicação e de relação; não podemos esquecer que é a partir dos 12 meses que a maioria começa a andar e a correr, descobrindo assim o mundo em seu redor. É a partir dessa idade que a aquisição e a expansão da linguagem adquirem um aspeto verdadeiramente central no desenvolvimento cognitivo e emocional dos mais novos.”
Pedro Strecht reconhece naturalmente um “mundo tecnológico que está presente no dia-a-dia e que, de verdade, as crianças já nascem por dentro dele”. Critica, porém, pais que “usam as tecnologias como forma de preencher espaços ou lacunas na relação direta com os filhos, mesmo com os de baixa idade”. Exemplo disso é o uso de tablets durante a refeição “para que não existam birras ou o tempo da alimentação seja mais rápido”.
Para a especialista em sono infantil Filipa Sommerfeldt Fernandes “vedar o acesso das crianças à tecnologia é tolice”, embora acredite na lógica do “bom senso e no equilíbrio”, para que se possa “retirar o melhor da tecnologia”.
São três especialistas com uma opinião transversal a todos: a tecnologia não é superior ao contacto humano no processo de desenvolvimento infantil. Ter um adulto em interação com a criança continua a ser o melhor caminho – e há estudos que o comprovam.
Pequenos nas lojas de apps
Um estudo do departamento de pediatria da Universidade de Medicina de Nova Iorque mostrou a influência que os meios eletrónicos têm na vida de crianças com menos de 2 anos. Os resultados revelaram, em 2010, que crianças mais expostas a conteúdos como filmes, DVD, televisão ou vídeos eram menos desenvolvidas em comparação com crianças com menor tempo de exposição a estes meios.
Recentemente, o estudo “Happy Kids: Aplicações Seguras e Benéficas para Crianças”, do Católica Research Centre for Psychological, Family and Social Wellbeing (CRC-W), da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, mostrou que as crianças mais novas – até aos 2 anos – são quem mais recorre às aplicações em dispositivos móveis.
Leia também | Crianças jogam futebol com robôs ao estilo BB-8
O estudo foi feito através da plataforma Pumpkin e contou com as respostas de 1968 pais em Portugal, de filhos com idades até aos 8 anos. Além de mostrar que as crianças fazem um uso quase independente da tecnologia, o estudo coloca a questão: em que circunstância é que há maior permissão para os miúdos terem acesso à tecnologia?
No topo da lista surgem situações sociais: em restaurantes, 587 dos inquiridos dizem dar acesso a aplicações. Depois, os pais (490) cedem quando precisam de trabalhar ou de cumprir tarefas domésticas. Por fim, 99 apontaram para um uso em situações de stress – quando é preciso acalmar as birras dos filhos.
O processo de imitação
O número a que Pedro Strecht chegou dá que pensar: os pais passam 37 minutos por dia em interação exclusiva com os filhos.
“O que se passa é que, em muitas circunstâncias, pais e filhos até estão fisicamente juntos, mas sem um verdadeiro contacto relacional; é essa questão que pode e deve ser tida em conta.”
Paulo Oom destaca o papel dos pais em todo o processo de educação, que deve ter em conta a moderação. “Entre os 2 e os 4 anos a criança pode ter ecrãs durante uma hora, mas com a presença de um adulto para orientar.” E não é apenas nesse ponto que pais e educadores têm importância. Muita da aprendizagem é feita através de imitação. “É fundamental os pais evitarem os ecrãs, porque às vezes dão um mau exemplo.”
Mas ainda há mais a ter em conta, principalmente nas ocasiões em que a palavra de ordem é brincar. “Não deve haver ecrãs nos momentos de brincadeira”, diz o pediatra. Filipa Sommerfeldt Fernandes aponta na mesma direção, referindo inclusive que a presença dos ecrãs na vida dos adultos também é excessiva.
Leia também | Minecraft quer construir próxima década com aposta na educação e código
“Os ecrãs em demasia impedem que haja momentos de conexão entre pais e filhos e são mais um fator para as birras dos pequenos – que passam a querer ver vídeos a toda a hora e que não gostam que estes lhes sejam retirados. Na hora de deitar podem ser mais um motivo de zanga. Além de que, embora estejam ‘quietos’ na cama, na realidade estão com o cérebro estimulado de uma forma que não ajuda ao sono”, garante a especialista.
Para dormir melhor
Quantas vezes é que não se ouve um pai ou uma mãe dizer que o filho não dorme bem? Cada criança tem uma rotina de sono muito particular, é certo, mas vale sempre a pena olhar para o ecrã do smartphone ou do tablet e perceber se não estará ali um contribuinte para o caso.
Os gadgets emitem luz azul. Embora os estudos nesta área sejam recentes, é referido sempre que esta tem influência no sono. “A forma como a luz é emitida pelos ecrãs afeta o relógio biológico, pois inibe a secreção de melatonina, a hormona do sono, desregulando os ritmos circadianos”, explica Filipa. E isto é válido tanto para adultos como para crianças. “Além de que a utilização de tablets antes de dormir atrasa a hora de deitar, e pode haver outros efeitos bem mais graves para a saúde física e mental” das crianças.
Paulo Oom refere que os pais devem aplicar a regra de não haver ecrãs uma hora antes de deitar. “A criança precisa de produzir melatonina antes de dormir.”
Pedro Strecht lembra que “o sono é fundamental para o crescimento físico e emocional de todos e os bons hábitos têm de começar cedo”.
“Com a ativação e a excitação de certas zonas cerebrais, desencadeadas pelo uso excessivo de tecnologias (muitas delas mantêm-se ligadas durante a noite), é natural que as implicações negativas sejam diversas, como por exemplo no comportamento ou no aproveitamento escolar”, segundo o pedopsiquiatra. Mas também há que desdramatizar e perceber que a tecnologia no mundo infantil precisa de estar alicerçada no bom senso, no equilíbrio e numa forte orientação dos pais.
Paulo Oom acredita que o uso consciente da tecnologia nos momentos de interação “não se trata de uma cruzada contra os momentos de media – é sim uma cruzada contra não haver momentos de brincar na rua”.
*Este artigo foi originalmente publicado na Insider de outubro de 2018.