De um lado Seixal, uma cidade inteligente em pleno nascimento. Do outro, Águeda, uma referência na inteligência urbana. O que têm em comum? Ambas veem na tecnologia uma ferramenta para melhorar a vida dos seus cidadãos e, pelo caminho, cortar na despesa pública. Em Portugal as cidades estão a ficar inteligentes: mais autónomas, mais conectadas e, no final de tudo, mais humanas.
Estavam a passear junto à zona ribeirinha. Carlos Ferreira, seixalense de gema, e Fátima Ferreira, nascida na zona do Fundão mas habitante do Seixal desde os 6 anos. Ele, mais pessimista, diz que a sua terra já teve outro encanto. Ela defende que a cidade está muito mais bonita. Na discórdia há um entendimento: nenhum dos dois sabia que o Seixal está a transformar-se numa cidade inteligente.
“Admito que possa haver ainda algum desconhecimento da população, mas temos procurado fazer chegar essa informação às pessoas”, diz Joaquim Tavares, vereador do pelouro do Ambiente, Serviços Urbanos, Energia e Espaço Público da câmara local.
O Seixal vai investir um total de 2,5 milhões de euros – entre dinheiro público e de investidores privados – para apetrechar de tecnologia e infraestruturas o percurso ribeirinho de quatro quilómetros que liga o Largo 1.º de Maio à Rua dos Operários, já do lado da Amora.
Se tudo correr como previsto, até ao final de março de 2019 haverá ecopontos que vão dar benefícios a quem fizer a separação do lixo, bicicletas elétricas e segways para quem quiser passear de forma mais rápida, um comboio elétrico para quem gosta de apreciar a vista e até contadores de água inteligentes para acabar com os problemas das faturações desajustadas. Luzes com sensores para analisar o ar? Check!
“Estávamos a trabalhar projetos soltos e este permite conjugar uma série de ações que vão dar maior relevo ao caminho de cidade inteligente. O que pensamos é que deve servir melhor as populações e deve ser mais sustentável”, justifica o vereador sobre esta aposta.
Em termos técnicos, o Seixal vai ser um dos dez Laboratórios Vivos para a Descarbonização, projetos que vão arrancar em igual número de municípios para reduzir o impacto que a rotina das cidades tem no meio ambiente.
No caso do concelho do Seixal, todos os projetos que vão arrancar deverão ajudar a reduzir o consumo energético em 680 mil Kwh por ano e a reduzir em 353 toneladas as emissões de CO2. Também vai haver poupanças para a câmara, mas Joaquim Tavares prefere não revelar números.
“Tudo isto contribui para termos melhor qualidade de vida e para inverter um ciclo em que o homem, por via do desenvolvimento, não olhou a meios para atingir os fins”, defende o vereador do Seixal, que também diz que em muitas cidades de Portugal já se veem “efeitos de uma intervenção que tem pensado este conceito da cidade inteligente”.
A norte, a 280 quilómetros do Seixal, há sistemas de reconhecimento facial a bloquear uma porta na Câmara Municipal de Águeda. Só os técnicos que lá trabalham têm a chave mágica. Devidamente acompanhados, entrámos.
A sala não é grande, mas os números são: em dois ecrãs gigantes é possível ver o total de incidentes já reportados pelos habitantes do concelho – mais de 37 mil – e também ver a taxa de satisfação da resolução desses problemas: 95%.
Como descobrimos que os habitantes de Águeda sabem que a sua cidade é inteligente? Às 11.30 de uma sexta-feira, em pleno horário de trabalho, estavam 72 pessoas ligadas à rede Wi-Fi pública.
É difícil referir todos os projetos de smart city que Águeda tem. Como salienta Jorge Almeida, presidente do município, “são dezenas”. Há contadores inteligentes nos edifícios públicos, há plataformas de dados abertas para quem quiser explorar, há bicicletas partilhadas, há 700 alunos no concelho que trocaram os livros por tablets na sala de aula e há um laboratório vivo.
Este laboratório, o Águeda Living Lab, situado em plena rua dos guarda-chuvas coloridos, tem impressoras 3D, máquinas de corte e kits de eletrónica para fazer robôs. Quem quiser aparecer é bem-vindo e não paga pela utilização.
“Acho que o coeficiente de felicidade está bastante em alta, sobretudo nesta altura aqui em Águeda”, salienta Jorge Almeida. “Acho que as pessoas sentem um orgulho grande, do posicionamento e de alguma notoriedade que o concelho tem vindo a adquirir ao longo do tempo.”
Talvez seja por isso que no edifício da câmara ninguém fica chateado por não poder usar os elevadores. Estão lá e a funcionar, mas apenas para quem tem problemas de mobilidade. Todos os outros sobem e descem as escadas, pela saúde e pela poupança energética – um exemplo perfeito do que é viver de forma inteligente.
Portugal mais inteligente
“Diria que há cerca de 40 municípios que estão a apostar de uma forma séria e que percebem que esta lógica da inteligência urbana vai trazer mais qualidade de vida aos cidadãos e, ao mesmo tempo, ferramentas de trabalho que permitem otimizar os recursos existentes.” É desta forma que Almeida Henriques, coordenador da secção de cidades inteligentes da Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) e presidente da Câmara Municipal de Viseu, pinta o quadro atual das smart cities em Portugal.
O autarca refere, no entanto, que ainda há muitos líderes de municípios a quem falta visão nesta área. Os números comprovam-no: um estudo feito pela Universidade Nova de Lisboa concluiu que quase 60% dos municípios portugueses dizem ter estratégia de smart city, mas são 80% os municípios portugueses que dedicam menos de 500 mil euros por ano à concretização das suas iniciativas nesta área.
Ou seja, há mais vontade do que projetos propriamente ditos. Algo que precisa de mudar, defende Almeida Henriques, pois pode ajudar a equilibrar a balança de um país que está a pender há vários anos para o litoral. “O recurso à inteligência urbana pode ser uma forma de nós também desenvolvermos mais rapidamente estes territórios do interior”, defende.
Catarina Selada, especialista no tema e diretora do CEiiA CityLab, considera que a estrutura dos municípios portugueses até é favorável para projetos de smart cities. “Os municípios portugueses, pela sua dimensão, com uma população permeável à introdução de tecnologias e de novas formas de mobilidade, têm-se mostrado um bom território para o teste de soluções no âmbito das smart cities”.
Por outro lado, estas iniciativas têm de ser orgânicas e não devem ser impostas, por exemplo, através de regras legislativas. “As estratégias de inteligência urbana deverão centrar-se nas especificidades dos territórios em termos económicos, sociais, culturais e institucionais, não existindo receitas únicas para a transformação de uma cidade numa smart city. É um processo de construção coletiva em que colaboram todos os atores locais: autarquias, centros de conhecimento, empresas, associações e os cidadãos.”
Se já há vários exemplos de projetos um pouco por todo o país, ainda há um elemento que está a faltar nos planos de cidades inteligentes em Portugal: integração. Na prática, os municípios têm trabalhado isoladamente em diferentes áreas, seja mobilidade seja gestão energética ou portais de transparência. Falta fazer com que tudo funcione entre si e, se possível, de forma automática.
“Podemos ter sensores de qualidade do ar e se uma determinada avenida da cidade começa a ter níveis preocupantes a nível da qualidade do ar, deve desviar-se o trânsito para outras artérias”, exemplifica Miguel de Castro Neto, subdiretor da NOVA Information Management School, na qual dirige a pós-graduação em smart cities.
Enquanto a integração de dados não acontecer, defende o académico, os governantes vão estar “quase de olhos tapados”. Miguel de Castro Neto diz isto também no sentido em que muitos dos dados que podem ser interessantes para o desenvolvimento de cidades mais inteligentes e autónomas estão do lado das empresas privadas, como as operadoras de telecomunicações.
“Devia haver uma camada de dados, eventualmente não trabalhados, que de alguma forma são um bem público, não um bem privado”, considera.
Ainda que o tema esteja sempre ligado à tecnologia, o professor da NOVA IMS deixa um conselho para todos os autarcas que ainda querem começar a desenvolver projetos nesta área: “Falar de smart cities não é falar de informática. Cidades inteligentes é usar a tecnologia para planear, gerir e servir o nosso território e o cidadão.” Agora é a vez de os autarcas serem smart.
Este artigo foi originalmente publicado na edição de julho de 2018 da revista Insider