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Somar, subtrair e programar: o código já chegou às escolas portuguesas

No 1.º ciclo, lógica e pensamento computacional vão ser competências básicas, como o são a capacidade para ler, somar ou subtrair. (Academia de Código)
Há pais a pedir para que haja programação nas escolas, acreditando que darão aos filhos competências para o futuro.
As crianças não aprendem a programar com linhas de código, mas sim com jogos lúdicos e pequenos exercícios.

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Alunos a partir dos 6 anos, seja do ensino público ou do privado, já estão a aprender a programar. Especialistas defendem que o pensamento lógico deve ser estimulado desde cedo.

Até parece que já nascem ensinados”, ouve-se quando se fala sobre a relação que as crianças têm com a tecnologia. Ver alguém de tenra idade desbloquear um smartphone tornou-se algo corriqueiro, porque sempre viveram com eles. Mas a questão vai mais além: é importante reconhecer que tecnicamente estamos a preparar uma geração para ocupar postos de trabalho que ainda não existem – à conta da tecnologia.

Por isso é preciso dar às crianças outras competências, nomeadamente com ferramentas que estimulem o pensamento lógico, a criatividade e a resolução de problemas. É justamente esse tipo de pensamento que vai ser reforçado nas escolas portuguesas neste ano letivo, com a Direção-Geral da Educação (DGE) a inserir as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) na matriz curricular-base.

Esta matriz funciona como um conjunto de aprendizagens que os alunos devem adquirir em determinada fase da escolaridade obrigatória. Conforme explica à DN Insider Maria João Horta, subdiretora-geral da DGE, a ideia é que “as crianças não usem os dispositivos apenas enquanto utilizador passivo”, destacando a importância de compreenderem como é que a tecnologia funciona. Por isso, depois da saída do Decreto-Lei n.º 55/2018, em julho deste ano, a matriz curricular-base do 1.º ciclo do ensino básico está a sofrer alterações: as TIC adquirem um carácter transversal, passando a ser uma área de natureza instrumental e de apoio às aprendizagens a desenvolver.

“Faz sentido desenvolver o pensamento computacional, a lógica de pensamento racional”, explica Maria João Horta.

Assim, no 1.º ciclo, a competência do pensamento computacional e a lógica vão ser abordagens básicas, tal como o são a capacidade para ler, somar ou subtrair. Mas é importante desmistificar que esta mudança nos conteúdos, que implicará também um esforço por parte dos docentes, não é sinónimo de colocar as crianças à frente de um computador a programar aplicações como se fossem adultos.

“Vamos utilizar a programação para perceber problemas de matemática, por exemplo: se a criança tem de ensinar um robô a fazer contas, ela tem de as conseguir perceber para ensinar.”

Transversalidade entre disciplinas

Desengane-se quem pensa que verá uma criança a programar na perfeição uma linha de código numa sala de aula como se fosse um programador júnior. Além de aprender o pensamento lógico da computação, em que se divide um problema em pequenos blocos, para facilitar a sua resolução, a abordagem é feita através de uma forma mais lúdica, com o objetivo de adaptar os desafios às idades.

Para Maria João Horta, da DGE, “o que faz sentido é preparar os professores para ensinar recorrendo ao pensamento computacional, não olhar para o código como algo fechado em si próprio”. Este tipo de pensamento vai estar presente em todas as escolas neste ano letivo, com o objetivo de tornar a programação uma ferramenta transversal – e que poderá ser usada para ensinar Português, Matemática ou Estudo do Meio.

Voltando ao exemplo do robô, conforme explica a investigadora Maribel Miranda, da Universidade do Minho: “Ao criar uma história para um robô, a criança estará a desenvolver competências da área do Português”, trabalhando também a imaginação e a criatividade. “Na Matemática, os docentes podem usar robôs para explicar temas como os quartos de volta”, explica Maribel, que está à frente do projeto Kids Media Lab, no qual se investiga os efeitos da utilização da programação e robótica no pré-escolar.

O projeto conta com a participação de entidades como os Politécnicos de Lisboa e Setúbal ou a Universidade do Minho, entre outros. “Há vantagens para as crianças, como a melhoria da motivação”, destaca a investigadora. Neste ano foi aprovado o financiamento europeu e nacional do projeto, até 2021, para que a equipa possa desenvolver a segunda fase, o Kids Media Lab II, que estudará os efeitos da programação e robótica no 1.º ciclo.

Cem mil vagas para programar

A Academia de Código é uma das várias empresas que estão a trabalhar com o Ministério da Educação para levar a programação até às escolas logo no início da escolaridade. Para este ano letivo, disponibilizou cem mil vagas para alunos, com as escolas e as autarquias a poderem candidatar-se a este tipo de abordagem pedagógica. “Acreditamos que no futuro toda a gente vai ter de saber programar, houve uma evolução muito rápida e a evolução tecnológica trouxe uma mudança de paradigma”, explica João Magalhães, CEO da Academia de Código, que também aposta na reconversão de adultos desempregados, utilizando a programação como uma forma de fazer frente às necessidades do mercado.

João Magalhães serve-se da estatística, que aponta os 15 mil postos de trabalho na área tecnológica por preencher em Portugal, para explicar a ideia da programação para crianças.

“Estávamos a resolver o problema [de falta de mão-de-obra] e a urgência mas não resolvíamos o problema estrutural. Fomos perceber que razões havia para existir este gap e percebemos a necessidade [de introduzir esta temática no ensino básico].”

Surgia assim a Academia de Código Júnior, primeiro em projeto-piloto e hoje já como uma opção consolidada. “Sabemos que se começarmos a ensinar isto às crianças só no secundário já é tarde”, reconhece João Magalhães. Para que a programação possa ser mais apelativa para as crianças, os materiais são adaptados ao ano escolar do aluno, e há materiais de apoio ao professor.

A Academia de Código disponibiliza uma formação gratuita para os professores, de 25 horas, acreditada pela Associação Nacional de Professores de Informática (ANPRI).

Durante as aulas, é usada uma plataforma chamada Blanc, que conta com jogos, vídeos, exercícios e muitas outras ferramentas para que os miúdos “possam tratar o código por tu.” No final do mês de julho, a Academia disponibilizou as inscrições para preencher cem mil vagas nestas aulas – e a procura já superou o número de inscrições recebidas no ano letivo anterior.

“Já temos cerca de 50 mil inscritos, mas acreditamos que ainda vamos ter mais. Já superámos os números do ano passado, em que tivemos 30 mil inscritos”, avança João Magalhães.

Até ao dia 7 de outubro, as escolas públicas ou privadas e as autarquias interessadas em ter Ciências da Computação como oferta curricular do 1.º ao 6.º anos ainda podem inscrever-se no projeto. Graças a financiamento europeu, as vagas são gratuitas, exceto na Área Metropolitana de Lisboa, no Algarve e nas escolas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Nestas zonas, a Academia de Código não conseguiu obter financiamento.

Já são os pais que pedem estas aulas

O Externato Luso-Britânico é uma das escolas que têm aulas de programação no currículo, com alunos que vão encontrar a Blanc pelo terceiro ano consecutivo. O exemplo é de uma escola privada, mas para a Academia de Código não haverá “ diferenciação entre público e privado, a ideia é dar a todas as crianças as mesmas oportunidades”. No Fundão, por exemplo, foi o próprio presidente da câmara que considerou estratégica a introdução da programação em todas as escolas do concelho.

A diretora do Externato Luso-Britânico parece partilhar da mesma visão. “Ensinar a programar é, para nós, ensinar mais uma linguagem no ensino primário, a juntar à linguagem artística, matemática, à língua portuguesa ou inglesa. Uma linguagem essencial para qualquer que seja a profissão que estas crianças irão escolher no futuro”, diz Maria João Simal.

Os pais já percebem a necessidade da linguagem. “Há escolas onde são os próprios pais a contactar a Academia, através das associações de pais, porque sabem [que a programação] é o futuro”, diz João Magalhães. Mas isso é a longo prazo; a curto prazo há quem tenha tido mudanças nas notas. “Vimos alunos que não se interessavam pela Matemática a descobrir o gosto pelo pensamento abstrato e raciocínio lógico”, explica a diretora do Externato Luso-Britânico.

Num estudo feito pela Fundação Calouste Gulbenkian, durante os projetos-piloto da Academia de Código, houve alunos a melhorar as notas de Matemática entre 11% a 17%. Este tipo de pensamento virado para a programação e robótica passa a estar, assim, vincado nos programas escolares.

A Academia vai mais longe, com uma visão ambiciosa: “O papel não é só o de introduzir o tema, é também sensibilizar para o assunto. Não vamos parar enquanto isto não tiver chegado a todas as crianças”, diz João Magalhães.

*Este artigo foi originalmente publicado na edição de setembro de 2018 da revista Insider com o título ‘Somar, subtrair e programar’.