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Blockchain tem uma nova missão: evitar intoxicações alimentares

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IBM e Walmart querem revolucionar o rastreio dos alimentos da fonte até às prateleiras do supermercado. O objetivo é evitar intoxicações fatais. 

Em maio de 2017, um surto de salmonela infetou 235 pessoas nos EUA, sem que as autoridades conseguissem perceber de onde vinha a contaminação. Enquanto o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças investigava a cadeia de fornecimento para localizar a origem do problema, foram identificados casos em 26 Estados, quase metade do país.

Descobriu-se em julho que a infeção estava ligada a papaias Maradol vindas do México. As autoridades demoraram dois meses a chegar à origem exata de um surto que matou duas pessoas em lados opostos do país, uma na Califórnia e outra em Nova Iorque.

“Tivemos de mandar recolher todo o produto durante semanas. E quando se descobriu a quinta de onde vinham as papaias infetadas, nem sequer era nossa fornecedora”, conta Frank Yiannas, vice-presidente de Segurança Alimentar da cadeia Walmart. A rede de supermercados tem um sistema privado onde os fornecedores partilham informação, tal como outras grandes cadeias, mas não há interligação.

“Os fornecedores que têm negócios com outros dez retalhistas têm de entrar em dez sistemas diferentes. Há muita redundância e duplicação de esforços”, aponta Yiannas. É isto que a Walmart e a IBM querem mudar com um projeto que usa blockchain para monitorizar a cadeia logística, desde a produção à distribuição de alimentos.

“A falta de transparência no ecossistema significa que toda a gente está a tentar detetar os problemas com dados insuficientes”, analisa Brigid McDermott, vice-presidente da unidade de Segurança Alimentar na IBM. A Organização Mundial da Saúde estima que todos os anos uma em cada dez pessoas sofra uma intoxicação por causa de alimentos contaminados e haja 400 mil mortes (125 mil crianças). Monitorizar melhor a origem e percurso dos alimentos ajudará a identificar mais cedo os problemas.

“É uma questão de big data. O que precisamos é de uma visão completa sobre o que acontece com os agricultores, os processadores, as empresas de logística, os retalhistas e os armazéns”, diz McDermott à Insider. O blockchain, que ficou conhecido por ser a base da moeda digital bitcoin, responde a estas necessidades porque constrói um registo descentralizado e imutável que rastreia todos os processos.

Como o blockchain está a mudar a segurança alimentar. Fonte: IBM. Infografia: Mónica Monteiro

“O que o blockchain faz é pensar no ecossistema dos alimentos como uma rede”, explica Brigid McDermott. “Há centenas de milhões de agricultores, milhões de fornecedores e retalhistas. Todas estas empresas estão a trabalhar de forma interligada, mas neste momento cada retalhista tem a sua solução de rastreabilidade.”

Embora os participantes da indústria forneçam a informação, esta é colocada em silos e não contribui para a transparência de todo o ecossistema. “Com o blockchain, a ideia é ver o que se está a passar com os alimentos, onde estão, qual o seu estado. É a mudança que estamos a tentar fazer com as soluções de segurança alimentar.”

Como funciona

A Walmart fez vários testes nos últimos meses com a solução blockchain fornecida pela IBM e as duas empresas formaram um consórcio para explorar uma adesão mais alargada da tecnologia na indústria. Fazem parte a Nestlé, Unilever, Tyson Foods, Dole, Kroger, McCormick and Company, Driscoll’s, McLane e Golden State Foods. Em paralelo, a IBM e a Walmart lançaram na China a Blockchain Food Safety Alliance, juntamente com a JD.com e com a Universidade Tsinghua. A ambição é grande: revolucionar a forma como se rastreiam os alimentos da fonte até à prateleira do supermercado.

O modo de funcionamento do sistema difere daquilo que o mercado conhece com a bitcoin. Cada entidade participante carrega a informação que tem na solução, o que pode ser a hora de partida, a temperatura, a localização GPS, e dá as permissões que entender. “O Walmart não pode comprar bananas a um anónimo e se houver um problema não saber a quem ligar”, exemplifica Brigid McDermott.

Estes dados podem ser carregados por um agricultor com um smartphone ou por um distribuidor que ainda usa folhas de cálculo, adianta, ficando depois acessível através de uma interface simples. “A visibilidade é transformadora nesta indústria”, considera a responsável. Vários concorrentes poderão usar a mesma plataforma porque os seus dados estão protegidos pelas permissões.

A outra vantagem do blockchain é que garante a confiabilidade da informação. “Uma vez na plataforma, é imutável. Se quiser mudá-la, tem de fazer um update e deixar claro que houve alteração.”

Seguir a manga fatiada

O primeiro projeto-piloto que a Walmart fez foi com manga fatiada, por ser um produto com curto período de validade. É produzida numa quinta e passa por processamento e empacotamento antes de seguir para o centro de distribuição, de onde sai para os supermercados. “Os alimentos passam por quatro, cinco, sete transações e passagem de mãos”, sublinha Frank Yiannas.

A maioria desses registos são feitos em papel e mesmo quando há digitalização trata-se de sistemas diferentes. “O blockchain não vai resolver o problema epidemiológico de determinar qual o alimento que levou as pessoas a ficarem doentes. Mas com o tempo ajudará os epidemiologistas a fazerem isso mais depressa.”

O desafio da empresa, tal como o da IBM, é atrair mais parceiros para a plataforma. O preço pode ser um entrave até para uma gigante como a Walmart: trata-se de uma rede low-cost que não quer impor custos aos agricultores nem aos consumidores. Neste momento, a IBM oferece a solução em formato SaaS (software como serviço) e o preço depende da escala do projeto. “Estamos convencidos de que isto deve poupar dinheiro ao sistema alimentar”, considera Yiannas, olhando para o futuro.

E em Portugal?

“Tanto as cadeias de grossistas e retalhistas como alguns fabricantes, sobretudo aqueles que têm origem internacional e presença em Portugal, têm manifestado interesse em acompanhar o progresso dos diversos pilotos realizados pela IBM, bem como as plataformas em produção a nível mundial”, revela Paulo Rodrigues, líder tecnológico de serviços financeiros na unidade IBM Global Markets.

O que a IBM Portugal está a analisar agora é a aplicabilidade dos padrões de adoção internacionais de blockchain no mercado nacional. A empresa investe nesta tecnologia desde 2015 e está em várias frentes, tendo já criado uma joint-venture com a gigante de transportes marítimos Maersk para transformar a cadeia logística deste segmento.

Em Portugal, é expectável que a adoção incida inicialmente nos casos de uso relacionados com auditabilidade de informação ou partilha de informação em tempo real, avança Paulo Rodrigues. Na partilha de informação, são requeridos menos participantes e pouco envolvimento regulatório, o que facilita a adesão. Os elementos-chave capazes de atrair empresas são “a rastreabilidade, finalidade e imutabilidade da informação contida no blockchain, sendo os mais adequados a um primeiro projeto”.

No caso da cadeia alimentar, os benefícios são claros para empresas e consumidores, e é expectável que apareçam mais soluções. “A segurança alimentar é a ponta do icebergue”, arrisca Yiannas. “Os benefícios são o aumento da eficiência no fluxo de fornecimento de comida, poder deter fraudes alimentares e até minimizar o desperdício alimentar.”

*Este artigo foi originalmente publicado na edição de julho de 2018 da revista Insider com o título ‘Blockchain. O que come é (mesmo) seguro?’