Snaps, stories, likes e notificações. Este é o dia a dia de um smartphone nas mãos da maior parte das pessoas. Mas há uma nova realidade: aos poucos os dispositivos móveis estão a ganhar relevo na área da investigação em saúde e vão transformar por completo – e até mesmo salvar – a vida de milhares de pessoas.
Na Barroca Grande, Covilhã, os cuidados de saúde têm hora marcada. Numa aldeia onde vivem poucas pessoas, a Associação Mutualista Covilhanense faz todas as semanas uma visita à população que vive mais isolada e que não tem transportes para os grandes centros, onde podiam vigiar melhor a sua saúde. Para Maria Furtado, de 64 anos, uma destas visitas revelou-se muito importante.
Apenas com recurso a três pequenos sensores e a uma aplicação móvel, foi-lhe detetada uma arritmia cardíaca. Em Portugal, estima-se que morram 11 pessoas por dia devido a ataques cardíacos. A habitante da aldeia do interior foi depois reencaminhada para o hospital para fazer exames mais completos: a arritmia, uma alteração no ritmo normal do coração, estava mesmo lá. A paciente recebeu aconselhamento médico e também medicação.
A aplicação que ajudou a detetar a condição de Maria Furtado chama-se Health e está a ser desenvolvida por André Ramos, um estudante do mestrado de Engenharia Informática na Universidade da Beira Interior. É uma das ferramentas que a unidade móvel de saúde da Mutualista Covilhanense utiliza para vigiar a saúde das populações mais isoladas.
“A aplicação ajuda as pessoas que fazem esta deslocação: tem a informação sobre os pacientes toda aglomerada, como por exemplo, níveis de glicose, tensão arterial e mais alguns parâmetros, e possibilita a realização de um eletrocardiograma preliminar”, explicou o investigador de 24 anos.
Ainda em programa de testes, que engloba mais de 40 pacientes, o estudante diz que a receção dos idosos ao sistema está a ser positiva, “até mais do que estava à espera”. “Às vezes estas pessoas que estão assim mais isoladas são menos recetivas à ideia, mas no geral gostaram bastante”.
“Naquilo que toca à própria saúde, é sempre muito bem recebida. É claro que eles olham para um aparelho tão pequenino e é algo que é diferente, mas não notamos qualquer afastamento ou hesitação”, confirmou por outro lado Isabel Fazendeiro, da Mutualista Covilhanense.
O exemplo da aplicação Health é um de muitos projetos de investigação em Portugal que estão a tirar partido da evolução dos dispositivos móveis para criar soluções mais avançadas na área da saúde. Os smartphones e tablets atuais são fáceis de transportar, têm um grande poder de computação e integram vários elementos de ponta, como os sensores fotográficos que permitem fazer muito mais do que tirar fotografias para o Instagram.
Hoje o smartphone é a chave de entrada na internet, mas amanhã pode salvar-lhe a vida.
O smartphone-guia
Também no interior, mas no norte de Portugal, em Vila Real, os dispositivos móveis estão a ser usados para melhorar a vida das pessoas cegas. Investigadores da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INES TEC) estão a criar um sistema de auxílio à orientação em espaços públicos e edifícios.
Este sistema é composto por três módulos: uma aplicação que dá informações contextuais como obstáculos, pontos de interesse que existem à sua volta ou a rota até esses pontos; uma bengala apetrechada de tecnologia; e um tablet equipado com um software de visão artificial.
João Barroso, líder do projeto conhecido como ISEABlind, explica que no topo da bengala existe um comando que permite percorrer pelas opções que o smartphone sugere e que são ditas em voz alta ao utilizador. “Ele consegue na bengala selecionar e interagir com a aplicação sem ter que interagir no dispositivo móvel”.
Para o sistema de orientação ser mais preciso é possível usar etiquetas de identificação por radiofrequência (RFID) que são lidas pela ponta da bengala – se colocar uma etiqueta junto a umas escadas de acesso, a bengala vai dar indicação desse ponto através de uma vibração. Para conseguir um posicionamento mais preciso, é ainda possível usar um tablet equipado com tecnologia de visão artificial para complementar a informação geográfica da aplicação, o feedback das etiquetas e a própria utilização mais tradicional da bengala.
O projeto ISEABlind já foi testado com sete utilizadores, um dos quais é Diogo Santos, de dez anos. O jovem diz que a primeira vez que usou o sistema foi “um bocadinho difícil”, sobretudo na orientação, mas depois de se habituar “é mais fácil”. “Quando estiver pronto, acho que vai ser bom para mim”, contou.
Diogo é dos utilizadores de teste aquele que mais vezes já experimentou o sistema de apoio e está convencido que vai ser uma ajuda para outras pessoas que também são cegas. “Só precisa é melhorar a orientação do tablet”, disse, em jeito de dica para os investigadores.
Insta-diagnósticos
O verão está a acabar, mas ainda milhares de portugueses vão passar largas horas estendidos na praia, a desfrutar o Sol. O que para uns é o merecido descanso, para outros é um risco acrescido – sem a devida proteção, o cancro de pele é uma ameaça real. Em 2017, num único dia de rastreio com cerca de 1.500 pessoas, a Associação Portuguesa de Cancro Cutâneo (APCC) detetou 107 casos de cancro de pele.
Não, ainda não há uma aplicação que ajude a evitar o cancro de pele, mas já há sistemas que pelo menos ajudam a detetar precocemente o aparecimento desta doença. A empresa portuguesa F3M, em conjunto com o Instituto Fraunhofer, está a desenvolver uma aplicação – por agora chamada de MpDS – que poderá ser usada por qualquer pessoa para fotografar um sinal de pele. A fotografia é depois analisada pelo sistema e diz ao utilizador a probabilidade de aquele ser um indicador do cancro de pele.
O ponto forte do projeto MpDS é que a mesma tecnologia de análise visual pode ser aplicada a outros casos – na Santa Casa da Misericórdia em Guimarães, por exemplo, está a ser usada para fazer um registo da evolução de feridas em pacientes. Mediante a integração de uma lente microscópica no smartphone, também vai ser possível usar o mesmo sistema para fazer uma rápida análise a uma amostra de sangue.
“Já há alguns cenários onde estamos a tentar implementar este cenário, será no caso da hematologia, há uma amostra de células de um utente e tentamos perceber se tem uma leucemia. Essa informação é enviada de forma automática para o laboratório para poder ser analisada e logo de seguida é redirecionada para o profissional de saúde”, explicou Pedro Salgado, coordenador de desenvolvimento de negócio na F3M.
Quando o produto final chegar ao mercado, dentro de um ano de acordo com os planos da empresa, poderá também integrar uma funcionalidade que vai permitir aos profissionais de medicina partilharem informação entre si. Um médico de família, por exemplo, será capaz de captar uma imagem de um sinal de pele do paciente e enviar a um colega para pedir uma segunda opinião.
Também a Skin Soul, startup portuguesa que fez um programa de incubação num centro de investigação da NASA, nos EUA, está a criar uma solução de análise de imagem para detetar cancro de pele. A diferenciação está na maior aposta que a empresa está a fazer em inteligência artificial.
“Essa imagem é cruzada com um algoritmo através da cloud numa base de dados e com esse algoritmo de inteligência artificial. Depois vai dar um resultado que indica o risco de malignidade ou de benignidade. O médico pode automaticamente referenciar o doente para a dermatologia. A decisão é sempre do médico, independentemente do resultado ser baixo ou elevado”, detalhou a fundadora da startup, Sofia Couto da Rocha.
Envelhecer e crescer com qualidade
Maria do Carmo Jorge tem uma voz jovem e cheia de energia. Em nenhum momento dá a entender que já tem 73 anos de idade e em nenhum momento a idade é um obstáculo para a sua relação com a tecnologia – o facto de ter dois filhos informáticos também ajuda neste capítulo.
Graças a uma nova aplicação que está a ser desenvolvida pelo instituto Fraunhofer, a CordonGris, Maria do Carmo já aprendeu alguns aspetos que deve melhorar sobre a sua alimentação: tem de beber mais água, ainda que diga que no inverno não “simpatize tanto”, e tem de ter mais atenção às quantidades que come de cada alimento.
“Achei graça o nutricionista chamar à atenção pelas quantidades. Nós dizemos ‘um bife com 100 gramas, isto é muito pequenino, é pouquinho’. É aquilo que nós necessitamos, não precisamos de mais. Mas para nós, se for um bifinho maior, é mais agradável”, confidenciou.
A CordonGris é uma aplicação móvel que conjuga dados específicos dos utilizadores e cruza-os com uma base de dados de alimentos. O objetivo é garantir que sobretudo as populações mais idosas fazem refeições saudáveis e talhadas para o seu perfil.
Uma das investigadoras deste projeto, Maria Vasconcelos, revela que 15% da população idosa tem problemas de má nutrição. “No Cordon Gris tentamos colmatar este problema ao saber informação sobre estes idosos, sobre as suas preferências alimentares, sobre a sua situação atual em termos de peso, idade, quais são os seus gostos alimentares. Assim sugerimos um plano semanal nutricional que os idosos podem seguir e assim ter uma vida mais saudável”.
O projeto Cordon Gris está a ser testado em Portugal, Inglaterra e Países Baixos, para que os investigadores também possam perceber que diferenças existem devido aos hábitos culturais. As fases de teste envolveram perto de cem utilizadores.
“A facilidade de utilização da tecnologia também é diferente. Por exemplo, aqui em Portugal, no início, os idosos não estavam habituados a lidar com os smartphones e com a aplicação, mas conseguimos ao longo destes seis meses que essas pessoas estivessem à vontade nestas novas tecnologias”
Quando questionada sobre como seria agora o dia a dia sem a aplicação Cordon Gris, Maria do Carmo disse que “é mais prático chegar, ler a aplicação e ver o que hei de fazer hoje ou amanhã, do que estar a puxar pelos neurónios, mas era capaz de me orientar”.
“Habituei-me durante um mês com a aplicação, já é um tempo suficiente para quando não tiver a aplicação me focar naquilo que aprendi”.
Já João Fonseca, investigador do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS), da Universidade do Porto, está a criar um jogo para ajudar crianças com asma.
Na app Arcade, em vez de tocar no ecrã, é preciso soprar para interagir com as personagens do jogo. Esta informação é usada para analisar a função respiratória dos jovens e para tentar prever crises de asma. “As crianças gostam muito de jogos. Já testámos em escolas e já conseguimos – o que por si só é um feito – ensinar as crianças só com o jogo, sem o profissional de saúde, a fazer uma boa parte dos parâmetros de qualidade que são necessários para colher a informação da capacidade respiratória”, revelou.
Em 2019 começam os testes finais e em 2020 deverá ficar disponível no mercado. A tecnologia está pronta, faltam é os estudos clínicos que validem a app.
Um projeto de cada vez, uma pessoa de cada vez, os dispositivos móveis e as aplicações estão a mudar hábitos, a detetar problemas e a tornar a saúde uma grande prioridade pessoal. É caso para dizer que os smartphones não fazem milagres, mas podem fazer maravilhas. Mais uns anos e será certamente uma verdadeira máquina salva-vidas.
*Esta é a versão integral do artigo que foi originalmente publicado na edição de julho de 2018 da revista Insider com o título ‘A máquina salva-vidas é um simples smartphone’