No artigo anterior caminhámos do imaginário distópico de Aldous Huxley para a realidade dos bebés proveta, da edição de genes, dos bebés design e da suspeita de práticas eugénicas.
Há que admitir que a tecnologia subjacente é neutra podendo ser utilizada para múltiplos fins, incluindo de utilidade pública, de acordo com determinação humana. Tanto assim que o Prémio Nobel da Química de 2020 foi atribuído a Doudna e a Charpentier que desenvolveram um método de edição do genoma, o CRISPR/Cas9.
Segundo a Academia Sueca, o método de engenharia genética premiado permite “reescrever o código da vida” e promete vantagens ilimitadas para o futuro da humanidade.
Engenharia genética e COVID-19
Uma das vantagens emergiu, recentemente, no âmbito dos testes ao COVID-19.
Os testes têm sido um factor chave na política de combate à propagação do vírus, com base no recurso generalizado ao sistema PCR. No entanto, a longa espera pelos resultados e a ausência de reagentes levaram muitos cientistas à “pesca” de alternativas. Foi nessa senda que foram criados, com sucesso, testes de diagnóstico rápido do COVID-19 com base na tecnologia CRISPR, testes esses que obtiveram a crucial bênção da FDA nos Estados Unidos (Nature News).
Mais, o sistema CRISPR é visto como uma potencial arma terapêutica na luta contra futuras pandemias. Os avanços de hoje no seio da tecnologia CRISPR serão naturalmente benéficos nas próximas décadas.
Engenharia genética e práticas eugénicas
Mas paira sobre a engenharia genética a suspeita de práticas eugénicas, sendo que a possibilidade de direccionar a engenharia genética para o melhoramento humano obriga à reflexão sobre questões éticas fundamentais.
A edição genética tem por base um diagnóstico de anomalias genéticas que podem ter efeitos na saúde física ou mental, oferecendo esperança no que toca à eliminação de condições genéticas consideradas indesejáveis, como a doença de Huntington. Estamos aqui perante a chamada eugenia negativa, sob a forma da rejeição preventiva de determinadas características genéticas.
Já a eugenia positiva inclui o estímulo de certos traços genéticos, almejando à promoção do aperfeiçoamento genético em geral e, em última instância à criação do super-humano – substancialmente melhorado em termos físicos e intelectuais.
O melhoramento humano já não é tema de distopias distantes.
Engenharia genética: preocupações éticas
A edição genética despoleta várias questões éticas entre as quais as seguintes.
Há quem tema ser impossível obter consentimento informado, esclarecido e livre para a edição genética porque os pacientes são embriões, não podendo fornecer tal consentimento, embora também haja quem afirme que a decisão é dos pais, que já tomam decisões semelhantes no âmbito da fertilização in vitro. Mas há quem note que não sendo conhecidos, por ora, os riscos, o consentimento em causa não pode nunca ser “informado e esclarecido”.
Subsiste também a preocupação de que o recurso à edição genética dependa da capacidade financeira do indivíduo, aumentando disparidades no acesso aos cuidados de saúde. Quem poderá ter acesso aos benefícios advindos da edição genética?
Pior, levada ao extremo a edição genética pode, dizem, criar classes de indivíduos definidas pela qualidade de seu genoma. A partir de que momento é que a edição genética deixa de ser meramente terapêutica e se converte numa ferramenta ao serviço da eugenia, criando o ser humano ideal?
Por último, tal como no contexto da fertilização in vitro surgem objecções de foro moral e religioso ao uso de embriões humanos, não apenas devido ao sacrifício de embriões mas também porque a configuração do ADN do indivíduo caberá a Deus e não ao ser humano.
Bem ciente de tudo isto, a Organização Mundial da Saúde encontra-se a examinar os desafios científicos, éticos, sociais e jurídicos associados à edição do Genoma Humano, com o objectivo de produzir recomendações em sede de limites e de mecanismos de fiscalização e assim gerar um padrão normativo internacional que tanta falta faz.
He Jiankui, que em 2018 recorreu à técnica CRISPR para editar em laboratório, in vitro, o genoma de dois embriões trocou os Estados Unidos pela China porque a edição genética não é permitida em tal país, enquanto a China proíbe a clonagem humana mas não a edição genética. Tendo mudado de país, montado laboratório na cidade de Shenzhen e estando, ao que parece, convicto de que actuava dentro dos limites da lei local, He Jiankui acabou por ser condenado a três anos de prisão por um tribunal chinês pela ilícita manipulação genética de embriões com fins reprodutivos (segundo a agência estatal Xinhua).
Conclusão
Não recomendo o encerramento de portas do saber e do conhecimento, mas a eugenia contemporânea e a promessa do super-humano (invocando movimentos transhumanistas e pós-humanistas) inquietam-me e exigem, penso, o estabelecimento de fronteiras éticas e jurídicas, imperativas, claras e globais, no campo da edição genética.
E termino com um excerto de Carlos Drummond de Andrade que, em 1967, na sua crónica em versos, “O Novo Homem” examinou atentamente a ideia do ser humano fabricado à la carte, escolhido em catálogo:
“O homem será feito em laboratório muito mais perfeito do que no antigório (…) Nele, tudo exacto, medido, bem posto: o justo formato, o standard do rosto. (…) Quer um sábio? Peça. Ministro? Encomende. Uma ficha impressa a todos atende. Perdão: acabou-se época dos pais (…) Não chame de filho este ser diverso que pisa o ladrilho de outro universo (…) Liberto da herança de sangue ou de afecto, desconhece a aliança de avô com seu neto. Pai: macromolécula; mãe: tubo de ensaio, e, per omnia secula, livre, papagaio, sem memória e sexo, feliz, por que não? Pois rompeu o nexo da velha Criação, eis que o homem feito em laboratório sem qualquer defeito como no antigório, acabou com o Homem. Bem feito.”
Patricia Akester é Fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual (www.gpi-ipo.com)
Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.
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