Poucos temas ligados à propriedade intelectual e, no fundo, à política cultural, têm tanta importância como o abalo estrutural introduzido pela revolução digital e pela Internet no mundo do Direito de Autor.
Fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual
A tecnologia digital emergiu como um poderoso instrumento de democratização do acesso à informação, à cultura e ao conhecimento, aliando a possibilidade de gerar cópias perfeitas de bens culturais e de proceder à sua disseminação a nível global, instantaneamente e praticamente sem custo. Desde a invenção da imprensa de Gutenberg que não se assistia a semelhante fenómeno.
Todavia, esta promessa de acesso universal, instantâneo e forçadamente gratuito a bens culturais, ameaça a sobrevivência dos alicerces conceptuais que viabilizam o processo de criação intelectual, surgindo uma questão fundamental: como pode a nossa sociedade garantir a dignidade e subsistência do criador e a sobrevivência das indústrias culturais na era digital?
É uma questão cuja resposta passa pela invocação, configuração e manutenção de uma série de equilíbrios: entre o acesso a bens culturais e o controlo do seu processo de distribuição; entre consumidores e criadores de bens culturais; entre os interesses da sociedade e os do criador intelectual; entre o consumo pouco reflectido de bens culturais e o fornecimento de incentivos e recompensas para a dinamização da cultura a longo prazo.
É inegável que a mera resistência ao desenvolvimento tecnológico não é uma opção, havendo sim, que adaptar a política cultural e o direito de autor a este admirável mundo novo. E tal processo de adaptação requere, note-se, uma postura dinâmica, não se compadecendo com uma atitude passiva, fundada na possibilidade de tais destinos serem determinados de forma darwinista.
O crucial equilíbrio de interesses não deve ser deixado à sorte; não deve ficar nas mãos das possibilidades tecnológicas e da evolução dos modelos de negócios. Não há soluções mágicas, mas existe, ou deve existir, uma política cultural abrangente e coerente que aposte na reforma legislativa, na intervenção institucional e na mudança de mentalidades. O apoio ao processo criativo tem de vir de cima e tem de ser coerente.
Passando para a Propriedade Intelectual (PI) em sentido abrangente, há que referir os desafios emergentes da Inteligência Artificial (IA). A IA é uma nova fronteira digital, montando à 4ªa Revolução Industrial, que terá enormes consequências tecnológicas, económicas e sociais e que transformará a maneira
como produzimos e distribuímos bens e serviços, bem como a forma como trabalhamos e vivemos.
E a PI será um dos principais campos de batalha para a competição neste contexto. O sistema de PI sempre pretendeu criar uma base económica sustentável para a inovação, a invenção e a criação intelectual e do ponto de vista puramente económico faz sentido que usemos o sistema de PI para recompensar invenções ou criações geradas pela IA, não sendo ainda claro quais serão os moldes de tal protecção.
Esta é uma realidade a que muitos intervenientes estão ainda a adaptar-se, nomeadamente os legisladores e as entidades reguladoras que devem cuidar destes temas.
Nunca, como hoje, foi tão essencial ter políticas públicas e práticas legislativas efectivas e apropriadas para a PI, já que estão em causa bens económicos e sociais muito relevantes.
Estes são temas que hoje interessam à generalidade da população, como mostra a recente polémica e debate sobre a proposta de Directiva Mercado Único Digital.
As entidades públicas e os legisladores precisam, claramente, de um know how específico e global sobre este assunto, já que estamos a falar de realidades que não conhecem fronteiras. A necessidade de ter uma estratégia, pública e privada, para esta área é óbvia.
Esta vai ser das áreas que mais depressa terá que se desenvolver e reforçar sob pena de vermos transformados em custos as enormes vantagens deste mundo novo aberto pela inovação tecnológica.