Sillicon Valley é visto muitas vezes como a Meca do mundo tecnológico. Mas nos últimos anos, do outro lado do planeta, tem nascido um rival à altura. Na década de 1980, Shenzhen era uma região dominada por campos e agricultores. Se nos EUA é feito o software sem o qual a nossa vida já não parece a mesma, aquela cidade chinesa é o berço de (quase) todos os gadgets que tem à sua volta.
“Quanto custa?”, perguntámos, apontando o dedo para uma vitrina recheada de auriculares sem fios com a marca da Apple. “Quantos queres?”, atirou de volta a vendedora, em inglês tremido. “Um”, dissemos, o que a fez soltar uma gargalhada.
Ali, nos grandes mercados de Huaqiangbei, considerado como o maior mercado de gadgets do mundo, quase ninguém compra e vende à unidade, pois o segredo está na venda a volume que se faz muito para fora da China.
No caso específico daqueles auriculares, o preço para uma cópia fidedigna dos Air Pods ronda os 25 euros, quando o produto verdadeiro custa 180 euros. Não é difícil de perceber por que razão estes mercados são uma visita quase obrigatória para quem ali passa.
Naquele que é um dos maiores centro comerciais da zona, o Seg E-Market, assim que lá entrámos há um elemento que se torna óbvio: o barulho de fundo. Não é de pessoas a falar, não é de gadgets a apitar, mas é sim o de metros e metros de fita cola a serem usados para lacrar as caixas das encomendas que já estão prontas para serem enviadas aos clientes.
Ao longo de nove andares, o barulho é uma constante em centenas de microlojas. Ainda que lá se venda de tudo, cada uma tem a sua especialidade: cartões de memória, processadores, todo o tipo de cabos, auscultadores, pens USB, ecrãs para smartphones e muitas capas para telemóveis.
Mas se é capas de telemóveis que procura, então o paraíso é no edifício ao lado, no Segcon. É mais pequeno, ‘só’ tem quatro andares, mas provavelmente tem muitas mais lojas do que o vizinho Seg-E Market, pois os espaços são ainda mais pequenos. Os corredores pequenos transformam o edifício numa espécie de labirinto de acessórios para dispositivos móveis.
Muitas destas lojas devem ter um metro quadrado de espaço e estão tão apinhadas de material que pode até tornar-se difícil encontrar o vendedor lá dentro e que muitas vezes está aninhado – sim, adivinhou – a fechar encomendas com fita cola.
Nos corredores a constante é outra. Há dezenas de pessoas com sacos pretos numa mão e listas de várias folhas noutras. Estão ali para recolher as encomendas que muitos de nós fazem em plataformas online chinesas, por os preços serem tão acessíveis que às vezes parecem irrealistas.
Mas nos corredores dos grandes mercados de Shenzhen também se encontram pessoas com perfis mais oportunistas. É o caso de Ocean – nome que usa quando fala com ocidentais -, chinês de 31 anos e cuja empresa, a TYR Logistics, tem como objetivo fazer com que mais facilmente os produtos à venda naqueles mercados cheguem aos países ocidentais.
“Posso ajudar-te a encontrar o que procuras”, disse-nos, depois de já se ter apresentado. “A minha empresa ajuda a enviar equipamentos daqui para outros países”, uma atividade que, garante-nos, tem tido cada vez mais procura.
Nunca tinha conhecido um português ‘ao vivo’ e só percebeu de onde erámos depois de o enquadrarmos no mapa da Europa. “Pútáoyá?”, respondeu. Sim, Pútáoyá. Esta é a palavra em mandarim para Portugal, o que fez Ocean dizer o que muitos outros estrangeiros dizem quando ouvem o nome do nosso país: “Ronaldo! Eu adoro futebol, ele é o melhor”.
Este chinês ainda experimentou a vida de jornalista durante dois meses, muito por causa do gosto pela fotografia, mas a realidade da cidade de Shenzhen fê-lo seguir outro caminho. Já trabalha na TYR Logistics há três anos e é por isso que diz com confiança que ali, em Huaqiangbei, são os indianos e os russos aqueles que mais tempo passam a regatear com os vendedores.
Se a vida dentro dos grandes centros comerciais é frenética, há um lado menos visível de Huaqiangbei, mas que é igualmente impressionante: as transversais e traseiras destes edifícios. Das bagageiras abertas das carrinhas mal estacionadas há um vai e vem constante de pessoas que ora estão a carregar caixas, ora estão a descarregar. O rebuliço é tão grande que parece quase impossível que a apenas algumas dezenas de metros dali, na praça principal de Huaqiangbei, é como se estivéssemos noutro mundo, muito mais moderno, civilizado e onde o que domina são as lojas de rua com logotipos brilhantes.
Parece, aliás, que aquela é a zona do mundo com o maior número de lojas da Apple, Xiaomi e Huawei por metro quadrado, quando na realidade nem sequer são espaços oficiais das marcas. Ali vendem smartphones ou fazem reparações a equipamentos danificados quase como serve um sumo ou um bolo num café.
O motivo para esta simbiose tão grande com os dispositivos móveis é fácil de perceber: não muito longe dali, num raio de 70 quilómetros, é onde é produzida uma grande parte dos smartphones que conhece.
Dentro das linhas de produção
É preciso uma viagem de cerca de uma hora de carro, a partir do centro da cidade, para chegar ao quartel-general da Huawei, uma das grandes empresas que Shenzhen já deu ao mundo. Sim, aqui não se faz, vende e envia apenas o hardware que o resto do globo vai usar, a cidade tornou-se também num polo de inovação.
O facto de na década de 1980 o governo chinês ter tornado Shenzhen numa zona económica especial, aberta ao investimento estrangeiro, fez com que rapidamente os campos verdes e as cerca de 30 mil pessoas que ali viviam, a maior parte delas ligadas à agricultura, passassem no espaço de 40 anos para uma das maiores metrópoles do mundo, plena de arranha-céus e com uma população que já ultrapassa os 20 milhões de habitantes.
Algumas das mais valiosas e inovadoras empresas de tecnologia da atualidade nasceram em Shenzhen. São exemplos disso a DJI e a sua armada de drones, a BYD, um dos maiores fabricantes de veículos elétricos a nível global – se andar de táxi em Shenzhen, é num BYD que vai ser conduzido -, e a Tencent.
Esta última é criou o WeChat, a app de mensagens usada por quase todos os chineses, não só para falarem entre si, mas também para fazerem tarefas do dia-a-dia, como pagar contas, pedir um táxi, uma refeição ou simples para descobrir, através de um jogo de abanar o telemóvel, quem é que em todo o mundo também está a fazer o mesmo.
No ocidente, a Tencent é mais conhecida pela sua presença nos videojogos, sendo dona total ou parcial de sucessos como League of Legends, da Riot Games, ou Fortnite, da Epic Games. Este acaba por ser um dos melhores exemplos de como a influência das tecnológicas chinesas está a invadir o quotidiano dos utilizadores na Europa e nos EUA, mesmo que muitas vezes não pensem ou reparem nisso.
Mas o melhor exemplo desta influência continua a ser o smartphone: desenhado em muitos países, mas fabricado certamente em Shenzhen. Cada linha de produção da Huawei – e na qual não nos foi permitido captar imagens – tem 120 metros de comprimento e fabrica apenas um único modelo – aquele que vimos a sair ‘quentinho’ foi o Huawei P20.
Lá longe, no final da linha, sai um dispositivo novo a cada 28,5 segundos. Por dia são produzidos, em média, 2400 novos telemóveis.
O trabalho agora já é quase todo feito por máquinas: se em 2013 cada linha de produção dava trabalho a 86 pessoas, atualmente só são necessárias 17 por linha. Ainda há tarefas, como a colagem da película que vem nos ecrãs de todos os smartphones, que são feitas manualmente, mas os humanos agora funcionam acima de tudo como supervisores de um trabalho cada vez mais automatizado.
Não deixa de ser curioso que apesar de as máquinas estarem a ganhar terreno aos humanos nestas tarefas, quando a linha de produção ‘faz asneira’ são os funcionários que ali estão que ajudam a salvar o dia. Pegam no equipamento defeituoso e levam-nos para uma bancada de inspeção com o objetivo de perceberem o que correu mal e onde.
Apesar da diminuição no número de trabalhadores por linha de produção, a gigante chinesa garante que os funcionários foram realocados para a expansão de outras linhas de fabrico – atualmente são 35 – e que até tem um programa de requalificação, caso estas pessoas queiram ganhar competências na área de gestão.
São estes funcionários, com conhecimentos de produção e gestão, que vão continuar a dar força ao domínio tecnológico que Shenzhen tem vindo a assumir, não só na China, mas no mundo.
* A Insider/Dinheiro Vivo viajou para Shenzhen a convite da Huawei
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