Para serem os melhores do mundo, trocaram a juventude por um ecrã e teclado

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Os melhores jogadores do mundo do videojogo Counter Strike: Global Offensive estiveram em Lisboa entre os dias 13 e 15 de dezembro no evento Blast Pro Series. Foto: Blast Pro Series

São jovens, chegam a ganhar mais de 15 mil euros por mês, viajam por todo o mundo, são adorados por milhões e têm aquela que é apontada como uma das grandes profissões do futuro. São atletas de desportos eletrónicos e só têm um objetivo na vida: vencer.

Adorava jogar futebol e tinha jeito para a bola, mas uma lesão nos dois joelhos aos 12 anos mudou tudo. Um golpe duro para um miúdo que rapidamente sentiu que precisava de encontrar uma alternativa para saciar a vontade de vitória que sempre existiu nele. Lukas Rossander virou-se para os videojogos.

“Lembro-me de ouvir a minha mãe dizer que precisava de sair, que jogava demasiado computador e eu dizia-lhe ‘mãe, preciso mesmo de jogar, estou a jogar com os meus amigos, estou a jogar numa equipa, vamos ser bons, tenho talento’.”

Agora com 23 anos, o dinamarquês é capitão da Astralis, a melhor equipa do mundo no jogo Counter Strike: Global Offensive (CS:GO). Chegou a esta equipa em 2016, depois de o último capitão ter sido despedido. Quando agarrou na Astralis, o grupo ocupava a 16.ª posição do ranking mundial.

Apesar de agora ser um verdadeiro Cristiano Ronaldo dos teclados e dos ratos – sobretudo na ambição de querer ser um dos melhores de sempre -, a reação dos pais ao início não foi pacífica.

“Quando fazemos 13 anos na Dinamarca, temos uma festa em que recebes algum dinheiro e presentes da tua família. Lembro-me de ter recebido dinheiro e de querer usá-lo todo num computador novo. A minha mãe disse que não. Tive uma conversa séria com ela, disse que precisava de ser o melhor jogador de Counter Strike e no final ela deu-me o computador”, confidenciou o jogador.

Ao fundo, à direita, Lukas “Gla1ve” Rossander. É o timoneiro da melhor equipa do mundo de CS:GO e vê Cristiano Ronaldo como um exemplo a seguir. Foto: Nuno Pinto Fernandes/ Global Imagens

Enquanto atleta de desportos eletrónicos (eSports), Gla1se, como é conhecido neste universo, abdicou de muito para perseguir a carreira de sucesso que tem. Quando esteve em Lisboa no início de dezembro, disse-nos que um dos seus melhores amigos fazia anos. “Vai fazer uma festa de aniversário e queria muito ir, significa muito para mim estar lá com eles, mas sei que este é o meu trabalho.”

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Não quis falar-nos dos seus ganhos, mas estima-se que já tenha conseguido mais de um milhão de euros só em prémios de competições que ajudou a vencer juntamente com os seus colegas.

“Quero sempre ganhar e detesto perder. Quero ser o melhor em tudo o que faço e penso que é algo que tenho dentro de mim desde que sou criança. Quero ser uma das pessoas que vão ser lembradas e reconhecidas.”

Quem também já está com um pé no Olimpo dos desportos eletrónicos é Marcelo “Coldzera” David. O ano de 2018 não lhe correu de feição, mas o brasileiro já foi coroado duas vezes como o melhor jogador do mundo de CS:GO: em 2016 e 2017.

Foi a ver o irmão a jogar que ganhou o bichinho pelo mundo dos computadores. Ganhou o gosto e decidiu que “queria jogar a nível profissional”. Foi aos 18 anos que decidiu arriscar.
Na altura já estava na universidade, pelo que teve de desistir. Quem não achou piada foi o pai. “A reação foi difícil. Os meus pais têm um negócio e o meu pai sempre quis que eu estivesse com ele na empresa, não queria que me afastasse, queria que estivéssemos juntos.”

Depois, aos poucos acabou por ir aceitando aquela que era a nova realidade do filho. Para provar de uma vez por todas a escolha que tinha feito, Coldzera pagou a viagem ao pai para que fosse ver a sua primeira participação num grande torneio. “Ganhámos. Depois disso acabou.”

O brasileiro Marcelo “coldzera” David já foi eleito duas vezes como o melhor jogador do mundo. É conhecido pela frieza dentro da arena de jogo e pela concentração. Foto: Nuno Pinto Fernandes/ Global Imagens

Para chegar onde chegou, o brasileiro natural de São Paulo, agora com 24 anos, dá todos os dias o máximo de si. “Muitas pessoas dizem a brincar que os desportos eletrónicos são um jogo para crianças, mas cara, temos uma rotina superintensiva. É pior do que um trabalho, jogamos 11 horas sem parar, temos toda a parte tática, a parte psicológica, a boa alimentação, a ida ao ginásio, treino tático e treino prático. É muito intensivo e cansativo.”

Mas depois vem a compensação: Marcelo David revela que os jogadores de topo nos eSports têm um ordenado mensal que varia entre os 8500 e os 15 500 euros, fora a parte do prémio que se recebe quando se vence uma competição. “No começo não sabia se ia resultar. Tudo na vida é uma questão de risco. Tens de arriscar algumas vezes e pagar para saber se vai dar certo ou não.”

Um dos primeiros a arriscar a sério nos desportos eletrónicos foi o ucraniano Danylo “Zeus” Teslenko: tem 31 anos e joga desde os 15. Apesar de estar quase a terminar a carreira – o próprio admite que só vai jogar mais um ano -, continua a ser um dos atletas de topo do CS:GO.

É uma estrela no mais verdadeiro sentido da palavra: durante a entrevista não tirou os óculos de sol, mesmo estando dentro de uma sala, e não largou o Instagram no smartphone. Para Zeus, isto não é só uma profissão, é um estilo de vida.

Danylo ” Zeus” Teslenko gosta de posar para as fotografias (mesmo que não pareça) e é um dos atletas que se mantém ao mais alto nível há vários anos consecutivos. Foto: Nuno Pinto Fernandes/ Global Imagens

“Quando sobes na vida, tens conquistas e vences competições, todos te adoram. Mas, quando perdes, aparecem os críticos. Mas isto já não me afeta, já jogo há muitos anos. São coisas normais para mim, não sinto grande pressão.”

Ao contrário da maior parte dos países, na Ucrânia os desportos eletrónicos já são reconhecidos como algo sério: a equipa pela qual Danylo joga, a Natus Vincere, foi a primeira de sempre a vencer três grandes competições num único ano. O próprio Danylo, natural de Carcóvia, já terá acumulado mais de 500 mil euros nas vitórias que amealhou ao longo dos anos.

“O desporto eletrónico está a crescer e muitas pessoas sabem que isto também é o futuro do desporto.” Mas deixou um aviso para futuros interessados: passa 80% do tempo a jogar e os restantes 20% são para distribuir pela família, namorada e outras atividades. “Ser o número um do mundo é difícil, existe muita pressão, exige muito tempo e muito da tua saúde.”

Quando a reforma aos 27 é normal

Apesar de se passar muito tempo sentados em frente a um computador, ser atleta de videojogos é desgastante em termos físicos: tendinites, problemas nas costas e no pescoço são algumas das maleitas mais comuns nestes atletas.

Estes elementos, aliados a uma vida de viagens constantes e de uma juventude mal gozada, faz que vários atletas de topo deixem de ser jogadores por volta dos 27, 28 anos.
Atualmente com 22, e uma das maiores promessas no seu terreno de jogo, Timothy “Autimatic” Ta não receia o curto futuro que poderá ter enquanto profissional de eSports.

“Não sabemos quão longe um jogador de eSports pode ir, mas ao mesmo tempo é muito entusiasmante para mim, porque sinto que sou uma pessoa adaptável. Quanto mais velho ficar, será um desafio para mim aprender novas formas de compensar a minha idade.”

Os pais disseram-lhe que, se desistisse dos estudos, então não voltaria para casa. Agora Timothy “Autimatic” Ta treina para ser dos melhores do mundo. Foto: Nuno Pinto Fernandes/ Global Imagens

O norte-americano é mais um que desistiu de ir para a universidade para perseguir o sonho dos eSports. Ainda nos tempos de secundário, dizia aos pais que queria desistir para seguir a vida dos videojogos a tempo inteiro. “Se desistires, não voltas para casa”, diziam-lhe.

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“Sempre fui do tipo de pessoa que, se é para fazer algo, quero ser o melhor. Gosto de aprender a melhor forma de fazer algo e com o Counter Strike foi fixe, porque aprendia algo novo, implementava e via logo os resultados. Isso tornou-se viciante para mim.”

Para atingir os seus objetivos, Timothy Ta desenvolveu uma rotina. Acorda, bebe café, alonga bastante o corpo e depois vai para o computador ver algumas demonstrações. Aquece um pouco antes do treino, cerca de uma hora, depois treina entre seis e oito horas e no final do dia vai ao ginásio com os companheiros de equipa. Apesar de não viverem juntos, estão a cinco minutos uns dos outros. “Depois volto para casa mais três ou quatro horas. Vou dormir e começa tudo de novo.”

Tem o sonho de um dia ajudar outros jogadores de eSports a estarem entre os melhores do mundo .“Seria bom encontrar um jogador no qual realmente acreditasse e passasse muito do conhecimento que ganhei ao longo dos anos.”

Outra grande promessa é Nikola “NiKo” Kovač. Aos 9 anos já jogava, muito por causa da influência dos pais – eram donos de um cibercafé. “Eles sempre me apoiaram, pois sabiam desde o início que eu gostava do jogo. Não tive discussões com eles por causa disto e eles sempre me apoiaram. Foi assim que cheguei aqui de forma tão rápida, foi com a ajuda deles e muito foi por causa deles, pois estavam sempre a motivar-me e sabiam que eu era a pessoa certa para isto.”

O ar despreocupado não revela a fera que é dentro da arena de jogo. Nikola “NiKo” Kovač admite que nunca foi bom na escola e que só pensava em jogar. Foto: Nuno Pinto Fernandes/ Global Imagens

Natural da Bósnia e Herzegovina, aos olhos dos conterrâneos a aposta que NiKo está a fazer na sua carreira é completamente fora da caixa. “Especialmente onde vivo, ninguém sabe o que são os e-Sports, não existem eSports de onde venho.” Lá, os mais novos não são encorajados a jogar, pois é visto como uma “coisa parva” de se fazer, explica.

Quem nunca achou parvo foi Jonas “Lekr0” Olofsson, a verdadeira carta fora do baralho dos atletas com quem falámos. Fica acordado até às cinco da manhã, acorda apenas uma hora antes do treino começar e não tem uma dieta específica para a sua vida profissional.

Viagens desgastantes? Nada disso. Passa, em média, duas semanas fora de casa todos os meses. “A nível pessoal, não me importo de estar sempre a viajar, desde que tenha algum tempo livre nos eventos.” Só não ficou mais tempo em Lisboa porque o aniversário da mãe estava a aproximar-se e precisava de voltar a Estocolmo, de onde é natural.

Jonas ” Lekr0″ Olofsson diz que a vida de profissional de eSports tem-lhe permitido viajar à volta do mundo, ao mesmo tempo que faz aquilo de que gosta. Foto: Nuno Pinto Fernandes/ Global Imagens

O sueco de 22 anos também foi o único a dizer que aquilo que faz não deve ser considerado como um desporto. “Não acho que seja um desporto. Considero um desporto coisas como o futebol ou o andebol. Mas considero o CS:GO um eSport, que acho que é um desporto de computador e deve haver diferenciação.”

Apesar de ser a antítese do jogador-modelo de desportos eletrónicos, há um elemento no qual a opinião de Jonas Olofsson converge com a de todos os outros. “Os eSports vão ser, no futuro, maiores do que alguns dos desportos tradicionais. Aliás, já são maiores do que alguns.”

* Este artigo foi originalmente publicado na edição de dezembro de 2018 da revista Insider com o título trocaram a juventude por um teclado e ecrã

Marcou o melhor golo do mundo em 2015. Agora é jogador profissional de FIFA