Desenvolvimento de vacina é “mais interessante para Estados que para privados”

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O Laboratório da universidade de Copenhaga, na Dinamarca, é um dos exemplos de iniciativas para desenvolver uma vacina para o novo coronavírus. (Thibault Savary / AFP)

Vítor Palmela Fidalgo, especialista em propriedade intelectual, refere que a patente de uma vacina contra a Covid-19 será “mais interessante para Estados do que para os privados”.

O tema do desenvolvimento da vacina para a covid-19 está na ordem do dia, com vários países a oferecer milhões a gigantes da indústria farmacêutica. Vítor Palmela Fidalgo, especialista em propriedade intelectual da Inventa International, aponta que, nesta ‘corrida’, os direitos da propriedade intelectual podem mesmo ser transformados numa arma política.

Como é que é possível explicar o conceito de propriedade intelectual de forma simples?

A propriedade intelectual é um conceito que abrange todas as criações do intelecto humano. Podemos categorizá-las em duas subáreas, nomeadamente, os direitos de autor e direitos conexos, que têm como objeto paradigmático as obras literárias e artísticas e, ainda, os direitos de propriedade industrial, que incluem, por exemplo, as patentes, os desenhos ou modelos industriais, as marcas ou os segredos de negócio. Se fizermos um paralelo com a propriedade dita corpórea, a propriedade intelectual não existe por si, pois não é apreensível aos sentidos. Ela apenas é apreensível ao intelecto humano, e por isso se diz que recai sobre bens imateriais.

A propriedade intelectual traduz a ideia de economia do conhecimento. Permite transformar o conhecimento num bem privado, que consiste no monopólio de exploração que é concedido. Este monopólio, ainda que habitualmente temporário, é necessário, pois permite retribuir o inventor e estimular a inventividade. É este círculo virtuoso que permite às sociedades avançarem tecnologicamente.

Como vê o tema da propriedade intelectual na Europa? Há algum tipo de medidas que possam ser tomadas para estimular esta área, por exemplo?

A economia da União Europeia é uma das que mais beneficia do sistema de propriedade intelectual. De acordo com um estudo de 2019, levado a cabo, conjuntamente, pelo Instituto Europeu de Patentes e pelo Instituto de Propriedade Intelectual da União Europeia, as indústrias que fazem uso intensivo do sistema de propriedade intelectual geram cerca de 45% do PIB europeu, representando 29% de todos os empregos. Uma forma de melhorar o sistema de propriedade intelectual europeu será colocar em prática a patente europeia com efeito unitário. A burocracia, custos e insegurança jurídica provocada pelo sistema atual – substancialmente fragmentado – não promove a competitividade da economia europeia. Adicionalmente, existe uma significativa disparidade entre Estados-membros no que à propriedade intelectual diz respeito.

O exemplo de Portugal é paradigmático. Apesar de o número de patentes continuar a crescer, ainda é diminuto se compararmos com os pares europeus. A economia portuguesa continua a produzir produtos de baixo valor acrescentado, não aproveitando todo o know-how, que em determinadas áreas, como, por exemplo, o vestuário e calçado, é bastante relevante. É preciso investir mais na inovação, tanto em termos técnicos, como de imagem. Temos de nos saber vender e para isso é preciso criar conceitos de negócios baseados na economia do conhecimento. Tendo Portugal uma economia pouco escalável e um mercado interno modesto, a propriedade intelectual será a única forma de nos destacarmos mundialmente e gerarmos riqueza. Caso contrário, só nos restará confiar no turismo.

É possível um país ter direitos de exclusividade ou a patente de um medicamento, por exemplo?

Em relação aos medicamentos, caso a invenção seja protegida por patente, esta permite obter uma exclusividade de exploração durante vinte anos. Logo, a resposta à questão é afirmativa; isto é, é possível o titular (público ou privado) da patente ter a exclusividade de exploração da mesma durante aquele período. Ora, tendo um monopólio privado, o titular irá agir como tal, tentando rentabilizar, ao máximo, o seu exclusivo. No caso de uma eventual patente sobre o tratamento do Covid-19, poderá não estar em causa, unicamente, a rentabilização monetária do exclusivo.

O sistema de propriedade intelectual poderá ser mesmo instrumentalizado, tornando-se numa arma política a ser utilizada pelo estado que obtiver tal patente. Aliás, acrescentaria que a investigação e desenvolvimento de uma vacina contra o Covid-19 será até mais interessante para os estados do que para os privados.

A habitual transitoriedade e a terapia associadas a surtos como este que estamos a viver, causa um desinteresse das farmacêuticas, pois o risco em I&D [investigação e desenvolvimento] pode não compensar. É por isso que não nos causa estranheza o investimento que tem sido feito por vários países na descoberta desta vacina. A questão é se o interesse estará relacionado, primeiramente, com saúde pública.

Recentemente foi noticiado que a administração norte-americana terá oferecido à empresa alemã CureVac, um montante significativo para obter a exclusividade da invenção ou, pelo menos, da investigação relativamente a um medicamento de combate ao Covid-19. Infelizmente, os dividendos políticos poderão ser bem mais interessantes do que a vertente puramente comercial ou de saúde pública.

Em relação ao tema da disputa de exclusividade da possível vacina para o vírus, há algum enquadramento da propriedade intelectual que estipule que, neste caso, o benefício da população esteja acima de valores de exclusividade?

De facto, não podemos tratar as patentes relacionadas com a saúde humana da mesma forma que tratamos juridicamente outras patentes que têm como objeto quase exclusivo o mercado. Isto é, temos de olhar para as patentes que versam sobre medicamentos de forma mais cautelosa, dado que poderá estar aqui em causa o direito de acesso à saúde. Perante a eventual instrumentalização do sistema de patentes, seja por imposição de algumas políticas comerciais, seja impondo custos excessivos para o acesso a medicamentos patenteados, o Estado português tem meios que permitem fazer face a esta circunstância, através das chamadas licenças obrigatórias ou compulsórias.

As licenças obrigatórias permitem “quebrar patentes”, i.e., atribuir licenças de utilização da invenção patenteada, sem o consentimento do proprietário da mesma. É referido expressamente no nosso Código de Propriedade Industrial a possibilidade de atribuir licenças obrigatórias por razões de “saúde pública”. Esta possibilidade nunca foi utilizada em Portugal, mas é possível. O titular receberá um royalty razoável, que terá sempre um custo mais baixo do que aquele que é normalmente pedido pelo proprietário.

Segundo a lei, a licença obrigatória por motivo de interesse público é conferida por despacho do membro do Governo competente em razão da matéria. Obviamente que a concessão de uma licença obrigatória sobre uma patente poderá gerar a retaliação económica do Estado onde é a empresa titular da empresa. De qualquer forma, a simples existência deste mecanismo, permite, muitas vezes, uma negociação mais ajustada no acesso aos medicamentos patenteados.

Este mecanismo está ainda em conformidade com a possibilidade do Infarmed, nos termos do Estatuto do Medicamento, autorizar, por razões de saúde pública, a comercialização de medicamentos que não beneficiem de autorização ou registo válidos em Portugal ou que não tenham sido objeto de um pedido de autorização ou registo válido (a denominado AIM – Autorização de Introdução no Mercado), o que permitirá que o medicamento chegue rapidamente ao mercado.

Caso alguma empresa chegue, entretanto à vacina ou medicamento para o vírus, como é que se processa o tema a nível de propriedade intelectual e patentes?

O sistema de patentes é como se fosse um “contrato social” entre o Estado e o inventor. Em troca de a informação sobre a invenção ser tornada pública (e assim todos termos acesso a essa informação) e, ainda, pelo esforço da investigação, o Estado atribui uma monopólio ao inventor de 20 anos de exploração. Todo o processo de proteção de patentes está uniformizado por diversas convenções internacionais. Assim, caso se tenha sucesso na investigação, deverá ser feito o pedido de patente perante as autoridades locais. O titular da patente terá um ano para internacionalizá-lo noutras jurisdições. Uma vez que a patente é um direito territorial, esta só estará protegida nos países onde a proteção for pedida. Aqui, o importante, é a data de prioridade estabelecida no país de origem.

A partir dessa data, que é o primeiro pedido, conta-se um ano para se proteger noutras jurisdições. Caso a invenção cumpra os requisitos da novidade, da aplicação industrial e não seja algo óbvio tendo em conta aquilo que já existe no sector dos medicamentos, a patente deverá ser concedida. Tendo a exclusividade atribuída pela patente, o passo seguinte será o titular negociar licenças de exploração para utilização do medicamento em cada país.

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