A tecnologia está a mudar o nosso corpo. E um dia o seu gadget favorito pode fazer parte de si

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    Ilustração de Luís Mestre

    Sabe quantas horas por dia passa com o seu smartphone? E se, um dia, este dispositivo não estiver só consigo mas até passar a fazer parte de si? A tecnologia não muda só a forma como nos comportamos ou trabalhamos, está também a introduzir alterações no nosso corpo. De mudanças na postura até à transformação da forma como pensamos, como vamos ser no futuro?

    De quantos números de telefone se recorda de cor? Sabe o nome da rua onde fica o seu médico sem consultar uma cábula? Claro que há respostas diferentes a estas perguntas, mas o mais provável é que haja uma base comum a todas: uma alteração causada pela tecnologia.

    Para que é que vamos ocupar espaço a decorar números de telefone se o smartphone o faz por nós? A mesma ideia é válida para já não precisar de decorar nomes de ruas – Avé, Google Maps! As rápidas movimentações do mundo tecnológico trouxeram alterações a vários campos, desde a forma como comunicamos, trabalhamos ou nos deslocamos no dia-a-dia. Mas não foi só isso que mudou. Também a forma como o nosso corpo se adapta a gadgets e até a forma como pensamos tem vindo a sofrer alterações. Não é que estejamos necessariamente menos inteligentes graças à tecnologia, mas a verdade é que nos habituámos a fazer as coisas de uma forma diferente.

    “O facto de termos estas tecnologias digitais fez que encontrássemos um caminho de menos resistência: não ocupamos o nosso cérebro e ocupamos sim memória externa”, explica Hugo Ferreira, professor do Departamento de Física e investigador do Instituto de Biofísica e Engenharia Biomédica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

    Além de ser professor universitário e investigador, Hugo Ferreira também trabalha no mundo das startups, ainda que em áreas diferentes: uma delas ligada à investigação de doenças como Parkinson ou Alzheimer e outra ligada ao mundo dos eSports. Pesquisar informação no Google ou usar a voz para ditar mensagens no WhatsApp tornou-se recorrente. “Com os motores de busca, aquilo que acontece é que as pessoas começam a esquecer-se de muita da informação ou não a retêm. Lembram-se de onde é que a viram mas não exatamente o quê e com uma especificidade muito menor.”

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    Ou seja, nesta lógica, aprendemos a lembrarmo-nos de palavras-chave ou conceitos para chegar a determinada ideia: quantas vezes não se recorda do nome de determinado ator mas consegue encontrar uma ajudinha no Google para lá chegar recorrendo a conceitos? Aí está a lógica de decorar palavras-chave para um conceito.

    Pensemos no nosso corpo aplicando conceitos que nos são familiares a partir justamente da tecnologia: “Quer os nossos computadores quer os nossos smartphones são dispositivos de memória”, exemplifica o professor universitário. No cérebro, o tálamo, um dos centros de integração de impulsos nervosos, “é um router que faz comunicar várias regiões do cérebro”; os nossos gadgets são dispositivos periféricos.

    “Acabamos por usar a tecnologia como uma extensão do nosso próprio sistema nervoso.”

    Enquanto humanos, o investigador reforça que existe um limite de conceitos e informação que somos capazes de armazenar, em determinado momento, quase como se fosse a “memória RAM” de um dispositivo – exemplifica. É possível que o uso tecnológico esteja a limitar essa tal RAM? Nem por isso. Aparece muito nos filmes que só usamos 10% do cérebro.

    “Aquilo que lá está [no cérebro] serve para alguma coisa. Normalmente tudo o que não é necessário a natureza põe de lado. Se pensarmos do ponto de vista evolutivo, não faz sentido os humanos usarem apenas 10% da sua capacidade. Isto quer dizer que 90% estaria a trabalhar sem qualquer propósito – e isto, do ponto de vista energético, não faz sentido, e para a natureza não faz sentido absolutamente nenhum investir em coisas que não estão a ser usadas.” Hugo Ferreira realça a capacidade adaptativa do nosso órgão que tudo controla: “O cérebro adapta-se à tecnologia, tal como se adapta a qualquer tipo de exercício.”

    O que está a mudar no corpo?

    No filme Tempos Modernos, datado de 1936, o icónico Charlie Chaplin fazia uma crítica aos movimentos repetitivos feitos pelos operários fabris, introduzido pelo processo de produção em série. Se nos anos 1930 se multiplicavam as alterações de postura causadas por muitas horas a desempenhar a mesma tarefa, nos tempos modernos também há uma alteração de postura cada vez mais conhecida – a coluna cada vez mais desalinhada. Estes casos repetem-se tanto que até já ganharam uma designação – text neck.

    Este fenómeno “resulta da flexão excessiva da cabeça e da região cervical para o uso de smartphones, tablets ou computadores, o que leva a contratura e dor da musculatura do pescoço, costas e ombros”, explica a médica Joana Silva, da área da fisiatria. “As posturas associadas ao uso intensivo da tecnologia estão a ter um impacto negativo na população e cada vez em idades mais precoces”, alerta a médica.

    Atualmente, passamos mais tempo a olhar para dispositivos tecnológicos que habitualmente não estão na nossa linha de visão. É justamente o ato de adotar uma postura mais curvada que depois dá algumas dores de costas. A isto ainda se associa uma vida mais sedentária, que também não ajuda neste campeonato. Joana Silva também aponta outra situação comum: “As tendinopatias do polegar com dor irradiada para o punho associadas ao uso do telemóvel ou PlayStation.” Mas a tecnologia não tem só um lado de bicho-papão: também há que olhar para as apps tecnológicas que permitem ajudar na prevenção de problemas de postura.

    “Com o desenvolvimento informático, há cada vez mais aplicações que fomentam a prática de exercícios de correção postural, que alertem as pessoas para realizar pausas”, exemplifica Joana Silva.

    E, olhando para a questão da reabilitação física, também há outro grande mundo em que os exoesqueletos têm capacidade para assumir um papel de destaque.

    O mundo dos exoesqueletos

    Empresas como a startup romena Axosuits já desenvolvem este tipo de estrutura, que tem capacidade para poder revolucionar o mundo da reabilitação física. Em Portugal, este tipo de reabilitação que tem vindo a ser estudada para aplicação em doentes com lesões na medula também é investigada. A ideia do projeto “Thertact-Exo: exoesqueleto controlado por atividade cerebral para reabilitação vertebromedular” valeu até um prémio neste ano, num valor de financiamento de 200 mil euros, no concurso Santa Casa Neurociências.

    À DN Insider, Nuno Sousa, um dos investigadores responsáveis pelo projeto, reconhece que “o uso de exoesqueletos em terapias de reabilitação já é uma realidade e com certeza será uma evolução” no mundo da terapia de reabilitação. A equipa multidisciplinar que vai trabalhar no desenvolvimento desta ideia – segundo Nuno Sousa, professor da Universidade do Minho – vai investigar a associação de um exoesqueleto a uma terapia de reabilitação com a “incorporação de estímulos sensoriais através de realidade virtual”.

    Antes de perceber para onde vamos, há que saber de onde viemos. Solveig Thorsteinsdóttir é professora do Departamento de Biologia Animal e investigadora do polo de Ciências da Universidade de Lisboa, estando ligada ao Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais. Nasceu na Islândia, licenciou-se nos EUA, fez o doutoramento na Universidade de Utrecht, na Holanda, e ainda passou pela Universidade de Brasília. De 2014 a 2015 foi presidente da Sociedade Portuguesa de Biologia do Desenvolvimento. Ligada ao mundo da evolução, esclarece que há que perceber a diferença entre as alterações ao indivíduo e as alterações genéticas.

    “Uma coisa é induzir alterações no nosso corpo como indivíduos, outra passa por as alterações serem transmitidas à descendência.” “Estarmos sentados ao computador e ter uma vida muito sedentária pode provocar alterações na coluna vertebral – tem efeito no indivíduo mas não é algo que esse indivíduo vá passar aos seus filhos.” E há a possibilidade de a evolução levar o corpo humano para outro patamar em que a coluna já esteja adaptada a estas condições? “Para estas modificações ocorrerem têm de ser adaptativas, têm de ser uma vantagem. E ter a coluna a funcionar mal nunca será uma vantagem, portanto acho que não vamos ter uma evolução a esse nível”, explica a investigadora, realçando também que alterações deste tipo podem demorar milhões de anos a acontecer.

    Segundo Solveig, para acontecer alguma alteração desta envergadura “tem de haver uma mutação que venha dos pais”, explica. No futuro, continuaremos a ser praticamente iguais? “Sim”, explica a investigadora – pelo menos no que às nossas definições-padrão diz respeito. Mas há quem não se contente com estas definições e esteja a investigar como é possível mudar o genoma humano. Uma investigação que não reúne consenso na comunidade científica – o caso do investigador He Jiankui é um exemplo.

    Para Solveig, “mudar o genoma do indivíduo é algo de uma grande responsabilidade”. E, caso existam mais casos destes, a incerteza é grande: “É uma caixa de Pandora. Isto tem de ser muitíssimo bem discutido.”

    O polémico anúncio da modificação genética

    A técnica chama-se CRISPR, uma sigla para Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats. Já existe há alguns anos, com o intuito de se editar o ADN de células para curar doenças ou produzir amendoins antialérgicos. O cientista chinês He Jiankui (na foto) anunciou o nascimento de gémeas, chamadas Lulu e Nana, que se tornaram os primeiros bebés com ADN modificado para serem resistentes ao VIH. Os debates sobre as questões éticas arrancaram: é aceitável ou não editar o genoma humano, as características basilares do ser humano? Jiankui está atualmente em prisão domiciliária, depois de ter desaparecido a seguir à polémica ter rebentado.

    Os humanos do futuro

    As nossas definições-padrão (o nosso ADN e formato humano) podem continuar a ser  iguais à nascença, mas a verdade é que há Neil Harbisson, cyborguequem não se contente totalmente com esta condição. Em 2010, foi criada a Cyborg Foundation, liderada pelos ativistas (e também eles ciborgues) Moon Ribas e Neil Harbisson. Neil não conseguia ver as cores – graças a uma antena e a um algoritmo, que comunicam com o cérebro, passou a “ouvir” as cores e a ter o estatuto de primeiro ciborgue – uma fusão entre os mundos humano e tecnológico. A fundação dedica-se à tarefa de investigar e desenvolver formas de, através da implementação de tecnologia no corpo, dotar os humanos de outras atividades sensoriais.

     

    Hugo Ferreira, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, acredita que casos como o de Neil Harbisson vão multiplicar-se. “É um pouco pensar nesta situação: já não sei onde é que deixei o telemóvel. E se em vez de o deixarmos pudesse andar sempre connosco? Ele já anda comigo o tempo todo, só não faz parte de mim. E se fizesse parte de mim, organicamente?” O professor da universidade lisboeta acredita que a ideia tem capacidade para ser apelativa, caso se trate de “uma solução que seja de fácil utilização, que nos permita estar constantemente ligados ou recorrer a periféricos de uma forma mais inteligente e mais simples. Se for fácil de usar, eu diria que as pessoas a vão usar”. Hugo Ferreira acredita que “cada vez mais wearables vão ser algo ainda mais intimista ou fusional”.

    Luís Fontão, neurologista, aponta um caminho parecido – as interfaces cérebro-computador. “As possibilidades são imensas e poderá representar a próxima fronteira tecnológica da humanidade”, explica. “O conceito passa por ligar diretamente o tecido nervoso, cerebral, da espinal medula ou dos nervos que se ligam à medula a dispositivos eletrónicos. Os objetivos atuais são devolver funções motoras ou intelectuais a doentes, mas no futuro ambiciona-se que potencie as capacidades intelectuais.”

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    Já há casos de dispositivos que permitem que chips sensíveis à atividade elétrica, integrados no cérebro, podem controlar braços mecânicos ou cursores digitais. Para o futuro, o neurologista exemplifica que estas investigações poderão ter duas vias de utilização: “Por um lado, conseguir controlar próteses mecânicas com implantes cerebrais, que vão mimetizar completamente os nossos membros com potência superior. Por outro lado, obter um híbrido de consciência e raciocínio, com as capacidades de processamento intelectual potenciadas por estes implantes.”

     Estará o reinado dos microchips a chegar? Na Suécia já há pelo menos três mil pessoas com microchips implantados para fins de identificação. Na imagem, pode ver-se um dos exemplos deste tipo de chip, que muitas vezes é do tamanho de um grão de arroz. São implementados entre o polegar e o indicador, debaixo da pele. Recorrem a tecnologia NFC para funções como substituir o cartão do ginásio, o passe dos transportes e até cartões de crédito. Pode parecer saído de um episódio da série Black Mirror, mas desde 2015 que o número de suecos a usar este gadget aumenta. Entre as principais preocupações estão os riscos de infeção, as reações ao sistema imunitário e, claro, o acesso indevido a dados.

    Recentemente, a empresa de segurança Kaspersky revelou que uma das preocupações dos ciberataques do futuro pode passar justamente pelo hacking de memórias – justamente através destes dispositivos. Para Hugo Ferreira, a questão não é tanto se isso vai existir ou não. “Dizer que fazemos brain hacking ou manipular as pessoas já acontece. Nós já somos manipulados todos os dias. O perigo é que quanto mais soubermos mais forte é a manipulação. Mas também maior será o potencial para fazermos coisas boas”, assegura.

    Este artigo foi publicado na revista DN Insider de dezembro/janeiro.