Um ensino multidisciplinar, flexível, onde as faculdades serão espaços de partilha. Líderes de empresas e universidades dizem-nos como deve ser o ensino no país, por um Portugal melhor.
A era digital está a mudar a forma como vivemos, como estudamos, pensamos, trabalhamos e interagimos. Mais do que canudos, os jovens estudantes querem ter um impacto no mundo e exigem mais conhecimentos e ferramentas tecnológicas. Ouvimos preocupações e ideias para um futuro mais integrado e colaborativo na aprendizagem dos portugueses, onde o ideal é que se esbata o fosso entre universidades e empresas e os currículos possam ser dinâmicos e ágeis.
A universidade como local para treinamos o músculo do pensamento e treino com experiências (onde especialistas das empresas devem estar) e não como mero local de transmissão de conhecimento. Em maio, Elon Musk, CEO da Tesla, emendou o seu diretor de comunicação quando este destacou um dos gestores da empresa. “Ter um curso em Stanford não interessa para nada, relevante é o que se faz com ele”, dizia Musk, que criou uma escola (Ad Astra) para os seus filhos, onde os alunos escolhem disciplinas pelos seus gostos e não são divididos por idade.
Cristina Fonseca, cofundadora do unicórnio português Talkdesk, concorda. “Aprender é para a vida, seja em troca de experiências, cursos online ou em espaços físicos.”
“Pressão enorme pelo talento”
O presidente do Instituto Superior Técnico, uma das universidades de referência do país e do mundo, Arlindo Oliveira, tem várias ideias sobre como o ensino dos próximos anos vai mudar. “A aula expositiva em que o professor fala e os alunos tomam notas torna-se cada vez menos relevante, porque a informação hoje está em todo o lado e os alunos preferem receber a informação em vídeos curtos e bem feitos”. O engenheiro admite que “o ensino movimenta-se mais para mecanismos interativos, baseados em projetos específicos e interação, onde as aulas vão ser cada vez mais um espaço de discussão”. Já existe mais de uma dezena de cursos disponibilizados online, “em que os alunos do Técnico ou de fora podem participar”, mas a mudança está a ser “lenta”, admite. Neste momento “a pressão por talento português é enorme nas áreas tecnológicas e não há cursos ou vagas suficientes”. O motivo? “O ensino cá está subfinanciado e não conseguimos abrir as vagas necessárias, sabendo que precisamos no país de mais 1500 engenheiros dos que temos”. Para o futuro, aposta numa relação mais próxima entre empresas e universidade, daí terem criado cursos pequenos e personalizáveis “para reconverter pessoas formadas noutras áreas dando-lhes competências mais tecnológicas”. Outro desejo é criar condições para um ensino mais flexível, onde quem tira engenharia civil pode complementar com outra área, por exemplo. “A inteligência artificial vai também ajudar-nos a tornar o ensino personalizado, criando tutores que definem a aprendizagem à medida dos conhecimentos, gostos e rapidez de cada um”.
Talento. Só contratar estrangeiros resolve falta de programadores
Especialistas que dão aulas
Cristina Fonseca, que ajudou a criar a Talkdesk (startup que fornece serviço de call center alojado na cloud) acredita que “o ensino em Portugal tem de mudar”. “Vivemos numa sociedade em mudança profunda e vertiginosa, onde as ferramentas que recebemos na universidade já estão, muitas vezes, obsoletas”, admite. Daí que a responsabilidade de aprender esteja mais do lado dos alunos. A atual venture partner da Indigo Capital, partilha uma experiência peculiar que teve em São Francisco, na Singularity University (organização que tem o futurista da Google Ray Kurzweil como mentor), onde fez um curso de verão gratuito. “Tive acesso a especialistas que estão a mudar a nossa sociedade, da genética, à robótica, aos carros autónomos, impressão 3D ou a ida ao espaço.”
Juntos, discutiam a educação, a fome no mundo, a saúde no futuro ou a energia”. Ao seu lado como alunos, estavam 80 pessoas de 40 países, desde especialistas do MIT, responsáveis por teles-cópios na Antártida, ou pessoas que ajudam refugiados em África”. O que tirou da experiência é que “a colaboração entre especialistas, investigadores, professores, empresas, universidades e alunos é o que irá alimentar o futuro”. Por isso, pede que as empresas participem mais no ensino em Portugal e, embora não queira ser política, se mandasse, “além de criar um ecossistema colaborativo de inovação”, iria limitar a vinda de empresas estrangeiras que “só buscam talento barato para, assim, dar força às empresas nacionais”.
Já Ricardo Marvão, responsável da Beta-I (organização que ajuda startups a crescer) e que trouxe o projeto da Singularity University para Portugal há poucos meses (já deram cursos feitos por medida a empresas), admite que “o ensino deve ajudar a mudar de mentalidades, porque cá há um medo incrível de falhar e de ter de tentar de novo”. Outro factor que quer ver alterado é a forma como, nas empresas tradicionais os líderes devem mudar de mentalidade: “Ainda não se dá força ao jovem talento que pode levar a empresa para o futuro”. Daí que existam cursos na Singularity onde põe lado a lado o CEO e o estagiário da empresa.
“Os millenials exigem multisciplinaridade, querem ter experiências rápidas que lhes dêem valor e não se importam de mudar de universidades ou empresas para o conseguir”. Marvão admite que há alguns bons exemplos em Portugal, mas é preciso maior ligação entre universidades, para dar a gestores formação tecnológica e engenheiros formação de gestão, por exemplo.
Na requalificação de pessoas está o ganho
A Academia de Código é uma startup criada e gerida em 2015 por João Magalhães que este ano vai formar pela primeira vez 400 programadores e começa agora a internacionalizar-se. Tudo começou com a requalificação de desempregados para se tornarem programadores juniores em 14 semanas de cursos intensivo e o responsável admite que a dar novas qualificações a quem se formou noutras áreas “faz todo o sentido” e tem números para o mostrar.
“A génese dos problemas e oportunidades que temos encontrado no mercado de trabalho está relacionada com a procura por competências mais tecnológicas que muitos não têm porque quando começaram a vida profissional algumas das profissões ainda não existiam”, explica o responsável que cita estudos que indicam que faltam 5 milhões de profissionais nas áreas tecnológicas no mundo e há 78 milhões de desempregados jovens (menos de 25 anos).
Ainda há estudos recentes a indicarem que 50% dos empregos que existem hoje podem desaparecer em 2025, ou seja, as crianças que estão hoje a estudar, quando forem para o mercado de trabalho podem ter formação em profissões que, entretanto, deixaram de existir. Neste contexto, João defende uma educação diferente, com mais preparação tecnológica mesmo em áreas teoricamente não tecnológicas e dá o exemplo de um projeto piloto da Gulbenkian que revelou que o ensino de programação a crianças as ajuda nos resultados a matemática.
“A tendência internacional que devemos seguir é a requalificação de pessoas. É inevitável. Além disso deve haver parcerias entre universidades de países diferentes e empresas e incluir maior mobilidade entre cursos e mistura de competências”, explica o responsável, que admite novas soluções mais dinâmicas do que a licenciatura tradicional e ensino personalizado, consoante o ritmo de cada aluno.
João Magalhães deixa ainda outro aviso: “as faculdades portuguesas vão, cada vez mais, competir com outras estrangeiras para captar alunos talentosos.” No entanto, há esperança até porque Portugal “pode-se tornar num país muito atrativo para atrair alunos de topo a nível mundial”, pelo sol, praia, custo de vida baixo, cultura simpática, comida e segurança e “também existem boas universidades”. Certo é que “a lógica mudou”: “aquela perspetiva antiga que terminamos o secundário ou a licenciatura e estamos feitos a nível de ensino para a vida acabou”.
“Temos que fazer reconversão de profissionais em muito maior volume em Portugal”
Experimentação prática nas universidades
O líder da startup portuguesa Unbabel (plataforma de tradução humana movida a inteligência artificial com sede em São Francisco), Vasco Pedro, acredita que só mudando e tornando-se mais ágeis e dinâmicas é que as universidades podem continuar a contribuir para as empresas e para a inovação. O papel dos locais de ensino “deve deixar de ser tão focado na aprendizagem de matérias por si só, mas mais em melhorar o músculo da capacidade de aprender dos alunos”. Nos últimos anos tornou-se óbvio “a mudança”: “as necessidades das empresas tem evoluído de forma tão rápida, que quando os alunos saem das universidades já as empresas mudaram, em programação então é flagrante”.
O CEO da Unbabel admite que em inteligência artificial Google, Unbabel ou Facebook têm evoluções mais significativas do que a maioria das universidades e “isso muda a aprendizagem lá feita, porque as ferramentas já mudaram quando muitos jovens saem do curso”.
Para a educação do futuro, Vasco diz que “há uma aprendizagem constante e uma necessidade de aprendizagem constante” de que quem tira cursos não se deve esquecer “para continuarem a evoluir”. Nesse domínio, os cursos remotos, online e à distância serão fundamentais para ligar pessoas à formação.
O especialista em IA admite que vê a mudança na educação já a acontecer nos EUA, onde vive (em São Francisco). “As universidades criam um espaço de experimentação prática, que se verifica até mais nos estágios de verão”. Ou seja, “tudo é alinhado para que as pessoas experimentem a prática e isso é complementar à parte mais teórica das universidades.”
Opinião semelhante tem Daniela Braga, CEO da DefinedCrowd, empresa desejada pelos gigantes tecnológicos que ensina os robôs a falar, pensar e ver. A responsável admite da empresa com escritórios em Seattle, Lisboa, Porto e Tóquio que o “paradigma de ensino também já mudou”.
“O professor deve ter uma função nas escolas – e pelo menos nos EUA já vemos isso -, muito mais orientadora e os alunos já se autoregulam por software educativo”. Para Daniela Braga, cujo percurso é sintomático das vantagens em ter valências em áreas bem distintas – começou por tirar Línguas e Literaturas Modernas e, ao aliar isso a curso de engenharia, tornou-se um bem valioso para a Microsoft -, “é esse o caminho”.
Estados Unidos a ajudar visão empreendedora em Portugal
Nuno Nunes, responsável do programa Carnegie Mellon Portugal (CMU), admite que a participação do projeto da universidade norte-americana no país, renovado recentemente, permite “dar destaque ao papel central crescente que as universidades desempenham no ecossistema de inovação, impulsionando o crescimento económico regional e nacional.”
Nesse domínio, hoje em dia, “o doutoramento não é mais do que testar ideias de negócios e trazer para o mercado essas mesmas ideias”. Essa era uma tradição que não existia em Portugal antes, admite. “Não tínhamos essa visão empreendedora que é prática comum nos EUA, com pessoas qualificadas, mesmo empresários, a apostarem em doutoramentos e em melhores conhecimentos tecnológicos sem barreiras mentais”.
O responsável elogia a nova ambição global de empresas no país e admite que há cada vez mais jovens portugueses a serem o talento que tecnológicas nacionais precisam para se destacar, isto numa altura em que o país até está na moda. Daí que seja importante que “essas empresas criadas por cá mantenham os centros decisão em Portugal e contribuam para melhorar o país”.
As parcerias feitas com os EUA “servem também para trazer a cultura americana, que é mais pragmática e ambiciosa do que a nossa, para o centro do nosso empreendedorismo”.
“Tecnologia em todas as áreas”
O reitor da Nova SBE, em Carcavelos, Daniel Traça, admite que embora haja um grande esforço da sua instituição em colocar os olhos no futuro “há um desafio enorme em Portugal para que as universidades se adequarem às novas tendências”. Certo é que uma sociedade cada vez mais assente em bases tecnológicas que mudam rapidamente “vai exigir muito de todos”. Traça elogia outras escolas de negócios portuguesas, como a Católica e Porto Business School e admite que “as universidades portuguesas estão num bom momento” e “tem-se recuperado algum do atraso”.
Os três maiores desafios são., primeiro, “dar novas competências”. “É preciso formar os jovens com tecnologia em todas as áreas”. No entanto, o que fará a diferença para a inovação será algo mais humano: “dar capacidades de liderança, trabalho em equipa e de pensar fora da caixa”.
O segundo desafio, é a investigação multidisciplinar, com maior ligação entre áreas, a gestão com a medicina, por exemplo.
O último e terceiro desafio é a interligação do ensino com as empresas. Traça termina admitindo que a universidade do futuro deve ter o seu sucesso medido “pelo impacto que consegue na sociedade, até porque a tecnologia está a mudar essa mesma sociedade e o próprio capitalismo terá de ser reinventado”.
A universidade deve ser, assim, “uma casa, um local neutro que pode ter ONGs, empresas e outras disciplinas lá dentro. Quem não reagir às mudanças que estão a chegar será inconsequente e irrelevante”.