O serviço de streaming de vídeo Netflix sabe muito bem como influenciar os utilizadores a verem determinados documentários e séries, e a fidelizá-los. Como? Através de inteligência artificial. O responsável Todd Yellin explica-nos os segredos da plataforma.
O que é que a tecnologia tem que ver com boas histórias? “Quase tudo.” Quem o diz é o expansivo ex-realizador Todd Yellin, eleito uma das pessoas mais criativas de 2017 pela Fast Company.
O vice-presidente de produto da Netflix (que até é um cineasta de documentários premiado) é um dos principais responsáveis pela parte técnica da plataforma, ou seja, de fornecer os conteúdos certos às pessoas certas e na altura certa.
Falámos com o energético e, claramente, apaixonado pelo que faz Yellin na conferência anual europeia da Netflix, em Roma, sobre a forma como a sua equipa tem conseguido, através da melhoria da experiência de utilizador na plataforma de streaming de vídeos, levar conteúdos locais a tornarem-se sucessos mundiais – exemplos da série espanhola La Casa de Papel, a alemã Dark ou a italiana Suburra.
320 milhões é o número de perfis que existem na Netflix, de um universo de 125 milhões de subscritores (registo que continua a crescer todos os anos).
Os números da Netflix são impressionantes e continuam a crescer, por isso, quando uma série é lançada pode chegar a 190 países (e 26 línguas) em simultâneo e pode ser usada em 1700 dispositivos diferentes. Com oito mil milhões de euros de investimento em novos conteúdos em 2018, disponibilizam 900 milhões para produções europeias – é uma das maiores produtoras de conteúdos na Europa. E quando gastam em inovação tecnológica? Este ano serão 1,3 mil milhões de dólares.
Netflix com hábitos de livro
“Focámos a nossa tecnologia para que as pessoas possam ver séries e filmes como leem um bom livro, que vai connosco para onde vamos, só que na nossa plataforma temos uma biblioteca de milhares de títulos ao carregar num botão”, explica Todd Yellin, para quem a Netflix está a “libertar pela tecnologia o storytelling (a arte de contar histórias)”.
Ou seja, o responsável dá o exemplo de que é possível começar a ver uma série à noite, na televisão da sala, continuar a ver no conforto da cama, no portátil, por exemplo, e continuar a ver na manhã seguinte na viagem de comboio, no tablet ou até no smartphone. A plataforma sabe sempre em que parte do episódio é que vamos, por isso, procurar o sítio certo deixou de ser problema.
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“No início, antes de termos essa tecnologia tão desenvolvida, as pessoas não viam tantos episódios. Agora é mais fácil fazer maratonas.” A programação com horários fixos e a monotonia da publicidade “é coisa do passado”: a resposta da Netflix é “uma biblioteca virtual sempre à nossa espera em vários aparelhos”.
Comunidades de gostos
Com novas formas de visualização chegam novos desafios. Às críticas de alguns sobre o excesso de títulos e de escolha na plataforma (todos os dias entram um a dois conteúdos novos), Yellin responde com a magia da tecnologia e das duas mil comunidades de gostos criadas pelas preferências dos próprios utilizadores, devidamente organizadas pelos algoritmos da Netflix e alterados todos os meses com afinações.
São essas comunidades que vão categorizar cada perfil (e cada subscrição pode ter vários perfis) e apresentar-lhe os conteúdos com mais potencial de agradar. “Queremos manter as pessoas na plataforma e a subscrever mensalmente”, diz Todd Yellin.
Na página inicial da plataforma, só estão dispostos 30 a 40 títulos nas sugestões de conteúdos para o utilizador. Daí que as comunidades de gostos sejam fulcrais para permitir a cada pessoa ver, no seu perfil, os conteúdos “perfeitos, ou quase perfeitos” para o seu gosto. A plataforma leva de tal forma a sério as comunidades de gostos, ao ponto de ter disponíveis dez fotos de capas diferentes (ou minivídeos) para os mosaicos (aquilo que ilustra o nome da série), usadas consoante cada tipo de perfil de utilizador.
Outro tópico que faz diferença é o nome das séries. Traduzir ou manter o original? Nos EUA, a série Las Chicas del Cable chama-se Cable Girls, mas na Holanda quase todas as séries surgem na língua original. São as preferências dos utilizadores (e a ajuda do tal algoritmo) que definem o nome.
Como fazem? Testam com dois pequenos grupos de utilizadores. Se mais pessoas virem uma determinada série com o nome original, é essa a opção seguida naquele país. “Às vezes resulta alterar o título para a língua local, outras vezes não, e fazemos isto série a série e não país a país.” O mesmo sistema permite escolher o que é dobrado ou legendado.
Sem saber, é o utilizador, ou melhor, o seu comportamento, que vai decidir o caminho a seguir em cada país. Essas preferências também ajudam a escolher os géneros que a Netflix vai apostar no futuro e nos orçamentos a dar a cada série ou temática. Yellin também nos explicou que existe um laboratório virtual, onde testam a mudança do interface da Netflix.
Fazem-no em pequenos grupos de utilizadores e veem as suas reações. Vence sempre a opção que parece manter mais tempo os utilizadores na plataforma. “É como evoluímos e lançamos as novas ideias.”
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Um dos segredos do sucesso de algumas séries europeias é a produção local de qualidade, disseminada pela plataforma global. Numa pequena conversa que tivemos com o CEO da Netflix, Reed Hastings, o responsável falou apenas num arrependimento nos mais de 20 anos da empresa: “Teria feito a internacionalização dos conteúdos bem mais cedo, mas a melhor decisão que tive talvez tenha sido precisamente tornar o negócio global mesmo a nível de produção de conteúdos em 2016.”
“Não podemos parar a nova concorrência, muito menos gastar mais do que eles. Temos é de tentar encontrar grandes séries apaixonantes.” Reed Hastings, CEO da Netflix em entrevista ao Dinheiro Vivo / Insider
O futuro da Netflix: Interatividade ao estilo ‘agora escolha’
Uma das coisas que pode ser o futuro da Netflix é a interatividade com o utilizador. Todd Yellin admite que já estão a ser feitos testes, especialmente na secção de crianças da Netflix. “Podemos facilmente gravar dois fins para uma série e permitir ao utilizador escolher o seu fim preferido”, explica Yellin. Depois dos testes, logo avaliam se fazem o testes em séries globais. Outra aposta é em contratar criadores por vários anos e não apenas para um projeto, para os fixar na Netflix.
- Números
- 8 mil milhões de euros de investimento em novos conteúdos em 2018
- 1,3 mil milhões em desenvolvimento da parte tecnológica em 2018
- 1700 tipos (e modelos) de dispositivos diferentes em que a Netflix está disponível
- 144 mil milhões de dólares é o valor de mercado em abril de 2018 da Netflix
- 3,6 mil milhões de dólares de receitas no primeiro trimestre de 2018 da Netflix (subiu mil milhões)
- 900 milhões de euros de investimento em novos conteúdos na Europa em 2018
- 3500 pessoas envolvidas na produção de 55 novos conteúdos na Europa
- 1 a 2 títulos novos por dia a entrar na plataforma
- 190 países têm Netflix e as séries, por normal, estreiam sempre em simultâneo em todos
- 26 línguas diferentes de conteúdos dobrados e traduzidos – exemplo da série Lost in Space
- 4 mil funcionários pelo mundo (200 na Europa, a maioria produtores locais – ainda nenhum em Portugal)
- 100 novos conteúdos europeus previstos para este ano
- 17 países fora dos EUA onde houve gravações de séries e documentários
Quem é Todd Yellin?
É o responsável por todo o interface que os utilizadores de Netflix conhecem e, embora passe o dia a tratar de assuntos tecnológicos – algoritmos, mosaicos, aparelhos de visualização e afins – foi nomeado uma das pessoas mais criativas do mundo em 2017, pela Fast Company. Porquê? Porque o vice-presidente de Produto da Netflix “conseguiu perceber a melhor forma do mundo ver conteúdos por todo o mundo, do Brasil às Filipinas”. Yellin tem, na verdade, um currículo bem criativo.
Como realizador de documentários, destacou-se em 1994 ao tornar-se na primeira pessoa a filmar crianças tibetanas a escapar pelos Himalaias – o que filmou foi difundido para o mundo pela Reuters. Escreveu um livro com base nessa experiência e dirigiu depois disso vários documentários, inclusive um passado na Birmânia em 1998. Também escreveu e realizou várias curtas premiadas.
Está há uma década na Netflix e em 2014 registou (em conjunto com mais quatro pessoas) uma patente sobre recomendações de conteúdo digital baseado em informações de utilizadores implícitas. Ou seja, é uma técnica para recomendar conteúdo digital a utilizadores, através de uma forma de aprendizagem do seu comportamento de forma contínua – tudo o que fazemos/vemos está sempre a instruir o sistema a nos conhecer melhor.
DESTAQUES DA CONVERSA DO CEO DA NETFLIX REED HASTINGS COM A INSIDER:
- “O lançamento do YouTube foi o primeiro momento-chave. Percebemos que a internet era mesmo o caminho, embora em 2005 e 2006 os vídeos tinham pouca qualidade. Começámos a fazer o nosso streamingem 2007.”
- “Não podemos parar a muita e nova concorrência, muito menos gastar mais do que eles. Temos é de tentar encontrar grandes séries apaixonantes.”
- “Teria feito a internacionalização dos conteúdos bem mais cedo, mas a melhor decisão que tive talvez tenha sido precisamente tornar o negócio global mesmo a nível de produção de conteúdos em 2016.”
- “A nível de gastos, por ano são 8 mil milhões que gastamos em conteúdos e 1,3 mil milhões em tecnologia. São escolhas racionais, mas queremos ser bons nos dois.”
- “É o problema do sucesso, agora todos nos querem imitar no streaming. Todas as grandes tecnológicas estão a tentar entrar nos conteúdos próprios, a Google com o YouTube, a Apple, Facebook e Amazon. As grandes empresas de conteúdos também querem – a Disney, a Fox. Temos de manter o foco. Não sei que impacto vamos ter com essas entradas, pode ser grande pode ser pequeno.”
- “Somos uma empresa de tecnologia e de conteúdos. Se olharmos para a Apple, eles são bons em quê? Tecnologia e moda. Têm um melhor faro para a moda do que qualquer outra empresa de tecnologia e são melhores em tecnologia do que as empresas de moda. É uma combinação única de duas qualidades que permitem um sucesso enorme… por isso não sei como se vão dar nos conteúdos, mas têm mais dinheiro do que todos”.
*Este artigo foi originalmente publicado na edição de julho de 2018 da revista Insider, com o título ‘O jogo da Netflix que nos vicia nas séries’.