Falámos numa mesa redonda virtual com dois cientistas da divisão de investigação do Facebook (Facebook AI) sobre como a pandemia acelerou a área de inteligência artificial (a área de self-supervised learning) e sobre os perigos do reconhecimento facial, que preocupam o especialista Yann LeCun.
Numa altura em que IBM e Amazon suspenderam o fornecimento da tecnologia de reconhecimento facial às autoridades norte-americanas (e a qualquer outro país), Yann LeCun, cientista-chefe da divisão Facebook AI e detentor dos Óscares da inteligência artificial (IA), os prémios Turing, admite que este é um tema “muito importante”. “Aplaudo a Amazon e a IBM por o terem feito e terem limitado os seus serviços cloud nessa área porque não podem ser usados pelas autoridades como se fossem totalmente fiáveis, escrevi inclusive sobre isso”, explicou um categórico LeCun, até porque “o seu uso pode ser perigoso”.
O próprio Facebook tem ferramentas evoluídas de reconhecimento facial e, admite, o cientista, chegou a cometer um erro. “Decidimos sair dessa hipótese e não devíamos ter entrado nela”.
LeCun diz que a ferramenta DeepSpace permite reconhecer uma pessoa numa foto. “Mas se quisermos reconhecer numa foto um amigo (o próprio sistema sugere, se a pessoa for nossa amiga), o amigo é alertado desse ‘tag’ e pode escolher se é ou não identificado”. O cientista explica ainda: “nunca licenciámos essa tecnologia e é só interna, nem nunca disponibilizamos isso pela cloud e esse reconhecimento nunca foi usado por autoridades no mundo, fica no nosso telemóvel, é local”.
LeCun admite que a tecnologia pode ter vantagens no futuro, mas há um perigo latente de se usar mal e se confiar em demasia. “Há uma necessidade em muitos países de regulação em relação ao reconhecimento facial, não há leis que protejam a privacidade facial nos EUA, mas devia haver. A Europa tem leis nesse sentido e está a preparar-se para ter mais, o que é positivo”.
Polícia de Londres vai usar câmaras de reconhecimento facial em tempo real
O que mudou com a pandemia na área de IA?
Antoine Bordes, diretor do centro do Facebook AI em Paris, admite que houve algumas áreas dentro da inteligência artificial ou machine learning a mudar ou a acelerarem devido à pandemia. Por um lado, o processamento de linguagem natural e as suas melhorias para ajudar a tradução foram fundamentais no contexto da pandemia. “São boas ferramentas, evoluídas e sem custos que permitem dar recursos imediatos em todas as línguas para traduzir de forma eficaz os novos termos usados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) de uma pandemia que ainda em dezembro era desconhecida”, diz.
Já a hub do covid-19 que o Facebook criou e disponibiliza com destaque na rede social, “usa técnicas de IA desenvolvidas no centro de Paris para identificar de forma automática posts que oferecem ou podem ajuda ou fazem questões relacionadas com a pandemia”, avança Antoine Bordes.
Já Yann LeCun explica que a pandemia veio acelerar um movimento em IA que já existia e que é agora ainda mais premente. “Chama-se self-supervised learning, ou aprendizagem auto-controlada e é a ideia de que é possível treinar um sistema para que ele descubra a origem dos dados ou complete os que estão em falta”. O cientista que divide o seu tempo entre a Universidade de Nova Iorque e o Facebook AI acredita que esse é o caminho para criar IA que tem uma lógica mais próxima da humana e os avanços são prometedores.
Como exemplo, LeCun explica: “este tipo de IA acontece quando mostramos um segmento de um texto a uma máquina, retirando algumas palavras e tentemos ver se ele consegue preencher o resto, se chega lá sozinho, e têm havido bons progressos nos últimos dois anos”. Há um ano, quando falámos com LeCun num evento em Paris, ele admitia a limitações dos algoritmos de IA em relação ao nível de inteligência humana: “O algoritmo é mais estúpido do que um gato doméstico”, diz líder do Facebook AI.
Esta nova fase para a inteligência artificial pode fazer a diferença quando é impossível recolher muitos dados sobre um tema e, permite, por exemplo, fazer traduções eficazes mesmo em línguas pouco usadas e onde há pouco texto para ensinar o sistema.
Antoine Borges explica ainda que esta se trata de uma nova forma de aprendizagem para os sistemas robotizados, semelhante ao que vemos num jogo de póquer, já que não se dá qualquer resposta. “Mas é claro que a aprendizagem humana e dos próprios animais é mais eficiente do que isto, basta ver que qualquer criança muito pequena reconhece logo um elefante depois de ver só algumas imagens de exemplos de elefantes”, o que ainda não é o caso da IA.
Borges complementa que com a pandemia há aplicações de IA que “agora são vistas como urgentes, inclusive as melhorias no som das conversas por vídeo e da tradução de discurso ao vivo, o que permite parcerias entre países sem barreiras linguísticas.” O responsável do centro de Paris do Facebook AI diz ainda que embora muitos não vejam agora o impacto positivo da inteligência artificial na pandemia, “ele está a acontecer o daqui a uns meses vão surgir os dados que o mostram”.
LeCun admite também que o chamado deep learning, aprendizagem mais profunda, “terá um enorme impacto na saúde e investigação médica no futuro próximo”. O cientista admite mesmo que “já há imagens médicas testadas com deep learning para detetar tumores, analisar raios X e analisar em concreto o tipo de pneumonia provocada pela covid-19.” Serão precisos mais alguns meses “para se perceber se os resultados no terreno estão a fazer a diferença”, “certo é que o impacto de IA na saúde e medicina será profundo e importante”.
Facebook estuda reconhecimento facial como autenticação no Messenger