Do Técnico para o mundo. É na Física que nasce uma nova geração de génios portugueses

O curso de Física do Técnico, em Lisboa, teve a média mais alta do país pela primeira vez neste ano. Partimos à descoberta do que é que o curso tem de especial, falando com ex-alunos que ocupam cargos de topo, do MIT à Microsoft, passando por Oxford. O que é que a Física tem?

Albert Einstein, Thomas Edison, Stephen Hawking, Galileu Galilei, Nikola Tesla, Isaac Newton, Carl Sagan, Marie Curie, Tim Berners-Lee. Todos são personalidades famosas que contribuíram de forma decisiva para a ciência como a conhecemos hoje. Todos partilham o facto de terem sido físicos (alguns juntaram à física outros campos da ciência).

O estudo e as práticas da física são influenciados por uma série de descobertas que começaram já na antiguidade e ainda estão em constante evolução. O trabalho no século XVII de Galileu Galilei, o pai da chamada física moderna, e de Isaac Newton, outro dos responsáveis da revolução científica, vieram chamar a atenção para o que, na altura, se chamava de filosofia natural. Em Portugal terão sido no século XVII as aulas do jovem flamengo Hendrick Uwens, em Lisboa, a constituírem o primeiro curso completo de Física no país.

É neste contexto de relevância da física, que é também uma categoria dos prémios Nobel desde o seu início (1901), que chegamos aos tempos atuais. O curso de Engenharia Física Tecnológica do Instituto Superior Técnico (IST) foi, neste ano letivo, aquele que conseguiu a média de entrada mais alta do país (em cursos onde entraram mais do que um aluno). Com a média de 18,9, o curso superou Engenharia Aeroespacial, também do IST, que em 2017 conseguiu 18,8 valores, e mostra uma tendência rara a nível europeu.

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Vasco Guerra, coordenador do mestrado de Física do IST, indica-nos razões para o sucesso: além do corpo docente “altamente qualificado”, o departamento de física do IST tem “grande projeção internacional” em áreas como “astrofísica e gravitação; física da matéria condensada e nanotecnologia; física de partículas e física nuclear; física dos plasmas, lasers e fusão nuclear”.

Além disso, permite grande “flexibilidade na escolha dos alunos”e tem 100% de empregabilidade. Jorge Dias de Deus, um dos fundadores do curso, explicava que “a Engenharia Física é a engenharia do que ainda não existe”.

Vasco Guerra explica que isso significa que um engenheiro físico está “apto para atacar qualquer problema nas fronteiras do conhecimento”.

“Os engenheiros físicos são atores da mudança”, “os alunos são as tropas especiais da ciência e da tecnologia”, diz. E o que leva os jovens a escolher a Física? “Uma curiosidade insaciável pelo mundo que nos rodeia”, até porque a física está “na base da ciência e da tecnologia, ajuda-nos a perceber como o mundo funciona, desde os telemóveis ao cérebro, dos tremores de terra às estrelas”. Essa interdisciplinaridade e abrangência leva a que físicos deem “contribuições decisivas na medicina, economia e, claro, nas engenharias”.

Ciência das cidades a partir de Chicago

Luís Bettencourt já vive fora de Portugal há mais de 25 anos. Foi um dos primeiros alunos do curso de Física no Técnico (em 1987) e esse foi o ponto de partida para uma carreira que, hoje, é focada nas inovações urbanas. À semelhança de várias pessoas com quem falámos, passou pelo Imperial College, de Londres (onde tirou o seu PhD). Seguiu-se Heidelberg (Alemanha), o Laboratório de Los Alamos (EUA), o MIT e o Instituto de Santa Fé (EUA). Desde 2017 é diretor do novo Instituto Mansueto para inovação urbana da Universidade de Chicago, que gere 35 milhões de dólares.

“Faço há algum tempo investigação interdisciplinar em sistemas complexos, focado mais em ciência das cidades”, explicou-nos o investigador, que já foi citado no The New York Times, New Scientist, Wired e Fortune. Sobre o curso de Física, recorda como tinham uma turma pequena, de 30, repleta de colegas com boas notas e interesses diversos. “Havia um ambiente intelectual entusiasmante e víamos a física como uma forma de pensar”, diz, admitindo que eram “idealistas”.

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Sobre a física em particular, é útil no trabalho atual por lhe ter ensinado princípios fundamentais: “Trouxe-me uma forma diferente de ver o mundo.” Na área da ciência das cidades procura vê-las como sistemas complexos, onde o foco deve estar sempre nas soluções para melhorar a vida do ser humano. “Há cidades inteligentes com soluções tecnológicas que não são boas para as pessoas e para as relações interpessoais”, admite.

Luís diz ter orgulho da Física como ponto de partida do seu percurso e recorda colegas no IST como Pedro Conceição, economista na ONU, ou Francisco Veloso, atual diretor do Imperial College, em Londres. Este último esteve vários anos como diretor da Business School da Católica e agora gere uma das universidades de ciência mais importantes do mundo.

“Do curso ganhei riqueza humana, uma formação muito sólida e a capacidade para pensar e aprender”, Francisco Veloso

Liderar o Imperial College, em Londres

Precisamente Francisco Veloso, o atual diretor do Imperial College, admite-nos que tem “excelentes memórias do curso por muitas razões”. A nível do ensino, recorda “o rigor, exigência e abrangência”, mas também os “colegas fantásticos”, não só porque “eram brilhantes, mas também pela diversidade de percursos, interesses e grande curiosidade intelectual e humana que tinham”.

“Do curso ganhei riqueza humana, uma formação muito sólida e a capacidade para pensar e aprender. Além disso, fora do curso, o Técnico foi uma fantástica plataforma para aprender também fora do curso, através do meu envolvimento e papel de liderança na Associação dos Estudantes, entre outros”. Ou seja, foi logo na licenciatura que Veloso ganhou gosto pela gestão.

E como é que passou do curso de Física para a liderança de business schools? “O meu  envolvimento e papel de liderança na Associação dos Estudantes, no Conselho Pedagógico e também na Junitec, a empresa júnior do Técnico despertou o meu interesse pelas ciências sociais, em particular a inovação e o empreendedorismo”.

O que se seguiu para Francisco Veloso foi um mestrado em Economia e Gestão de Ciência e Tecnologia no ISEG, que foi a sua introdução às ciências sociais, para onde partiu para um PhD em Technology, Management and Policy, no MIT, em Boston, EUA. Esse foi o pilar para uma carreira académica na área de inovação e o empreendedorismo, tendo chegado a professor Catedrático nessa área em Carnegie Mellon, também nos EUA.

“Durante esse período estive na direcção do programa CMU-Portugal, o que me fez conhecer melhor o ambiente universitário e em particular as escolas de gestão em Portugal”. Francisco Veloso teve a sua oportunidade quando Fátima Barros saiu da direcção da Católica-Lisbon para a Anacom, sendo convidado para desempenhar o papel de diretor (Dean) da Católica-Lisbon SBE. Ao longo de cinco anos mostrou o que valia, num “período fantástico”, onde contribuiu “para a afirmação internacional da escola”. Resultado? “Surgiu a oportunidade do Imperial College, muito ligado precisamente a inovação e o empreendedorismo, e aqui vim parar”.

O sonho da fusão nuclear

Nuno Loureiro, professor e investigador do MIT (EUA), nasceu em Viseu há quase 41 anos e desde os 17 que vive fora da sua terra natal. Em 1995 foi estudar Física para o IST, em Lisboa. “O ambiente era contagiante, com pessoas de valor. Quem chegava lá, como eu, como o melhor até ali, encontrava outros ainda melhores.” O ambiente “estimulante incutia em cada um vontade de se exceder”.

A paixão pela investigação na área nuclear – está no departamento de ciência nuclear e engenharia (NSE) do MIT – começou no curso. Além do Imperial College, esteve em Prin- ceton e no IST, até que foi convidado para o MIT.

“Foquei-me na fusão nuclear, por achar que tinha o potencial de uma revolução energética com resultados possíveis no meu tempo de vida.” Hoje trabalha em áreas que contribuem para essa fusão, da turbulência de plasmas à chamada reconexão magnética, que é o que dá origem, por exemplo, às explosões solares. Este estudo contribui para a fusão nuclear, uma forma de energia que promete há décadas revolucionar o planeta.

“Tenho esperança de que aquilo que estamos a desenvolver no MIT, e não só, mostre a exequibilidade da fusão nuclear em dez ou 15 anos.” Se o conseguirem, pode esperar por um mundo de energia ilimitada, com menos problemas ambientais e sem dependência do petróleo. No MIT encontrou tudo aquilo com que podia sonhar, alunos e colegas brilhantes, ideias incríveis a flutuar por todo o lado. Daí que não tenha planos para voltar.

Trabalhar com Bill Gates

Samuel Martins entrou em Física no IST já em 2000. “Foi uma experiência fantástica, mas difícil, que exigiu muito esforço, mas que me ensinou a resolver problemas complexos.” Mas antes de entrar em Física, com o sonho de ser cientista em relatividade geral, já tinha desejado ser médico. Depois do curso do IST foi para a McKinsey & Company fazer gestão. “A verdade é que nunca tive nenhum objetivo definido para a minha carreira.”

A inspiração, essa, vem “da vontade de aprender” e vê o curso, o doutoramento e a McKinsey “como as escolas”. Em 2013, decidiu candidatar-se para a Fundação Bill e Melinda Gates, já que “queria ter impacto em populações mais desfavorecidas”. Foi Program Officer na área de saúde global e, depois, promovido a senior strategy officer. “Cinco anos e dois filhos depois”, decidiu agora sair e ir para a Microsoft, em Redmond (também fica na zona de Seattle), “para acelerar a curva de aprendizagem”. No entanto, admite voltar à fundação no futuro.

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Por lá teve “uma experiência única” em que aprendeu bastante sobre a área da saúde e a inovação tecnológica a ela associada: “Passei a ver a inovação de um ponto de vista totalmente diferente.” Trabalhou, por isso, diretamente com Bill Gates, algo que diz ser “surreal”. “Ele chama-me Sam! É realmente inteligente e fico impressionado com a sua dedicação à fundação, ao tentar ter impacto nas populações mais desfavorecidas.” Está há pouco tempo como diretor de negócio, desenvolvimento, estratégia e inteligência artificial de saúde da Microsoft, tema que prefere não desenvolver nesta altura. Um regresso a Portugal? É bem possível.

De onde vem a matéria?

A lisboeta Filomena Nunes esteve com Luís Bettencourt no primeiro ano do curso de Física, de 1987. “O nosso grupo tinha um ambiente contagiante e formou teóricos muito fortes em áreas diferentes, da física nuclear a altas tecnologias”, explica a professora e investigadora em física nuclear da MSU (Michigan State University, EUA) e diretora da Aliança Teórica FRIB ( Facility for Rare Isotope Beams). Daí que quando partiu para Inglaterra para fazer doutoramento na Universidade de Surrey, sentia-se “muito bem preparada e em vantagem em relação a alguns colegas”.

Voltou a Portugal, ao Técnico e, depois de uma passagem breve pelo Porto, foi para os EUA para uma realidade diferente. “O MSU está no topo da investigação nuclear nos EUA e convenceram-me a vir para cá em 2003 e isso transformou-me por completo”, explica sobre um ambiente com investimentos de milhões.

Atualmente, além das aulas e investigação, lidera a chamada Aliança Teórica FRIB (Facility for Rare Isotope Beams). A sua área é de física nuclear de baixas energias, a pergunta principal que tenta responder é “de onde vem a matéria”. “Estamos num ponto de transformação, já que existem observações de ondas gravitacionais que ajudam a responder a essa pergunta fulcral”, quando o conseguirem pode levar a uma energia nuclear mais verde e sem o lado nocivo que existe hoje.

De Oxford a… Marte

Pedro Gil Ferreira Pedro

Pedro Gil Ferreira é autor e professor de astrofísica na Universidade de Oxford e membro do Oriel College e esteve nos primeiros tempos do curso de Física. Numa conversa breve com o astrofísico luso-britânico, recorda “que foi um curso difícil com colegas muito talentosos” que até foi o que mais o estimulou.

Até chegar a Oxford “surfou” pelos seus interesses em astrofísica, do Imperial College, a Berkeley, nos EUA, passando pelo CERN, em Genebra, até chegar em 2000 a Oxford. Chegou à cosmologia por acidente, por estar em voga nos anos 1990, não se arrepende e admite “adorava ir a Marte”.

Trabalha na forma como o universo ganhou uma estrutura de larga escala e já colaborou com revistas internacionais e documentários. O que mais o orgulha foi o trabalho na formulação de energia escura e a análise de fundo de radiação cósmica, que provou que o universo tem geometria euclideana. Sobre previsões para o futuro da humanidade, garante apenas: “os seres humanos são muito maus a fazer previsões”.

Trabalho na Airbus “impossível sem ter estudado Física”

Henrique Candeias é um talento português a brilhar na Airbus, a maior empresa aeroespacial e de defesa europeia, como engenheiro de instrumentos espaciais. É de uma geração mais jovem do que a maior parte dos protagonistas com quem falámos nesta reportagem, tendo terminado o curso de Física há cerca de 15 anos. “Física foi a minha primeira escolha no final do ensino secundário, porque queria seguir engenharia, mas com vertente científica e de tecnologia, já que o meu sonho desde pequeno sempre foi o espaço”. Daí que nunca teve dúvidas que o Técnico “fosse das melhores escolas nesta área”.

Vive na Alemanha há seis anos e, embora não seja hoje em dia um físico, “seria praticamente impossível de fazer o que faço sem ter estudado Física”, daí que a grande maioria dos seus colegas na Airbus sejam igualmente “físicos vindos das mais variadas universidades do mundo”. E o que faz? Conseguiu trabalhar em temas espaciais. O seu cargo é o de engenheiro de Calibração e Performance de Sistemas e Instrumentos [Espaciais] Ópticos, “desde as fases preliminares e de estudo das missões, passando pelo seu design e concepção, até às fases ditas finais, onde os instrumentos/satélites são testados e entregues para serem lançados para o espaço”.

Voltando ao curso de Física, a exigência inicial mostrou logo a Henrique que estava num patamar de excelência. “Os professores sabiam bem demostrar que estávamos perante do que melhor que se sabia e fazia em todo o mundo, na grande maioria dos domínios científicos que estudávamos”, admite o engenheiro. Além de dar bastante trabalho, o curso tratava de “temas complexos e exigentes”. Henrique é alentejano de Portalegre e admite que, talvez por vários virem de fora, era bastante evidente “a colaboração mútua e entreajuda entre colegas, por vezes durante noites atrás de noites e aos fins-de-semana”. Daí que tantos colegas se mantenham próximos: “existe um núcleo não-oficial de antigos colegas de Física, com muitos colegas do meu ano e de outros anos próximos, que se encontra de forma regular pelo verão e pelo Natal, diria que é o lobby da Engenharia Física do IST”.

Terminado o curso, de cinco anos (foi antes do processo de Bolonha), continuou ligado ao Técnico, no grupo de geofísica, durante um ano, mas foi sol de pouca dura: “a paixão pelo espaço falou mais alto”. Daí que tenha ido trabalhar para a empresa Deimos. Foi lá que participou em várias missões espaciais da ESA (Agência Espacial Europeia), ao ponto de ficar colocado directamente num centro da ESA durante as fases mais críticas da missão de observação terrestre SMOS: “desde meses antes do lançamento para órbita até ao final do “commissioning” do sátelite, que é quando se considera que este está, por fim, operacional”.

A experiencia acumulada durante os anos na Deimos foram o passaporte que lhe abriu as portas da Airbus. “Aqui tenho a oportunidade e o prazer de trabalhar na forma mais próxima possível com instrumentos e satélites, que são hoje e a partir da Alemanha o seu dia a dia.

A inovação e a tecnologia fazem, assim, parte do seu trabalho diário. Sem tecnologia e desenrascanço inovador “não seria possível entregar as mais complexas e inteligentes soluções num domínio já de si tão inovador”. Daí que a maioria da grande quantidade dos desafios relacionados com o seu trabalho na Airbus esteja intimamente ligada a questões como: “Será fisicamente possível fazer algo assim?” ou “Existe forma para abordar este ou aquele problema que ninguém ainda tenha conseguido solucionar?

E como é que a Airbus está a inovar? “Inovação faz parte do ADN Airbus! Não há um produto Airbus que, aquando do seu lançamento, não tenha sido inovador face à competição”. Um dos exemplos, já com algumas décadas, é o do A320, “que foi revolucionário pela inovação fly-by-wire em contraste com o que os demais fabricantes de aviões ofereciam aos seus clientes”. Mais recentemente, o A380 e o A350 tornaram-se “os maiores exemplos dessa mesma mentalidade inovadora”. No seu dia a dia, “cada nova missão que tenha destino a órbita da Terra, está invariavelmente passos em frente, em complexidade e performance que lhes são exigidas,  comparando com o que foi feito até então”.

Henrique tem, na posição em que está, contacto direto com inovação que também está prestes a chegar ao comum dos mortais. Daí admita que, “os robôs já existem há muito tempo e “temos de estar agradecidos ao seu incansável ‘esforço’ e ‘dedicação’, porque seria impossivel imaginar o mundo onde vivemos sem o trabalho dos rôbos em praticamente tudo o que tocamos”. Sobre o potencial “tremendo” que a Inteligência Artificial representa para a humanidade, “ainda carece do cumprimento de regras elementares”. “Compete-me também como engenheiro tirar o melhor partido dela no intuito de trabalhar e produzir melhor tecnologia e melhores produtos”, explica Henrique Candeias.

No futuro acredita que não só os carros autónomos, “mas também os aviões autónomos podem contribuir para que as nossas cidades fiquem ainda mais inteligentes”. Sobre o big data, “é já é uma realidade” e “o 5G está aí ao virar da esquina”. Motivos mais do que suficientes para acreditar que as vantagens da tecnologia parecem ser superiores a alguns desafios que elas também irão trazer.

 

“Temos imensos Ronaldos na engenharia, na física e investigação”