É o fim do dinheiro como o conhecemos. E Portugal está atrasado

Pagamentos digitais | Dinheiro físico | Fim do dinheiro

Portugueses estão “ávidos pelos pagamentos eletrónicos” e Google, Amazon e afins podem ajudar graças à nova diretiva europeia, mas “neste momento não está a acontecer nada”. Plataformas como MB Way já têm um milhão de utilizadores e há novos players a aparecerem, das startups às criptomoedas.

Por Elisabete Tavares, João Tomé e Rui da Rocha Ferreira

Na era tecnológica, da facilidade de pagamentos e uso de serviços (tipo Uber), em que não se paga com notas ou moedas, há cada vez mais pessoas a preferir os pagamentos eletrónicos. O dinheiro invisível veio para ficar. E o mercado global de pagamentos por telemóvel, que cresce 24% ao ano e deve atingir os 1,08 biliões de dólares em 2019, de acordo com a Accenture, é sinal disso.

Paddy Cosgrave dizia na última Web Summit em Lisboa, em novembro, que “é incrível ver como startups fintech como a Revolut ou a N26 foram desvalorizadas por muitos quando passaram pela Web Summit, há uns anos, e hoje são gigantes que ameaçam o negócio dos bancos”.

Nesse contexto, Michael Schlein, presidente e CEO da Accion (organização sem fins lucrativos), acredita que o dinheiro físico é coisa do passado: “É caro, ineficiente, pode ser facilmente roubado ou perdido e é um entrave ao progresso.” O responsável da associação que tem promovido a inclusão financeira com os pagamentos eletrónicos garante que “existem três mil milhões de pessoas de fora ou mal servidas pelo setor financeiro tradicional e tornar os pagamentos digitais pode fazer a diferença”.

A nível global, o melhor exemplo é o sueco, líder mundial em dinheiro eletrónico. Michael Schlein conta que “metade dos retalhistas suecos prevê deixar de aceitar notas a partir de 2025 e até as igrejas já aceitam donativos por sms”.

Sebastião Lancastre, CEO da Easypay, uma fintech que já conta com 6500 clientes em Portugal e em 2018 processou 178 milhões de euros em pagamentos eletrónicos, admite que Portugal já esteve “na vanguarda dos pagamentos, nos tempos do multibanco” e acredita que “o futuro vai ser sem dinheiro físico na carteira. Mas nos últimos tempos, o país perdeu o rumo e estamos a ficar para trás em tudo o que é inovação nesta área”, refere.

A nova e “entusiasmante” diretiva PSD2 é já uma realidade “vivida em alguns países da Europa desde janeiro de 2018. Portugal, em 2019, ainda está a fazer a transposição”, ou seja, “por cá ainda não está a acontecer nada, estamos a demorar demasiado tempo na regulação dos novos serviços que podem ser criados com a diretiva”, avisa Sebastião Lancastre.

Então e Portugal?

Há vários serviços em Portugal que permitem dispensar o dinheiro físico, além do típico pagamento online por cartões de crédito e pelo multibanco. O PayPal foi dos pioneiros (tem cerca de 700 mil utilizadores no país) e o MB Way, da SIBS, já com um milhão de utilizadores nacionais e novos serviços previstos para 2019.

No caso do MB Way, aquela que foi a primeira solução interbancária nacional gratuita que permite fazer compras e transferências pelo smartphone, vai passar a ter taxas em alguns bancos, o que prejudica a marca. O CEO da Easypay diz que o sucesso do MB Way mostra que os portugueses estão “ávidos pelos pagamentos eletrónicos”. O problema? “Foi lançado como serviço gratuito e agora passa a haver taxas”, o que complica tudo, apesar de haver bancos que já garantiram que vão manter as operações gratuitas, como o Santander ou o Banco CTT.

Nas transferências bancárias também há o PayShop (em postos de gasolina ou supermercados) e o Altice Pay, uma solução de pagamentos online. Depois, fintechs como a Revolut, já com licença que permite atuar como um banco em Portugal, também têm ganho protagonismo no país, que é o seu oitavo mercado. A Revolut chegou a 100 mil utilizadores e está a crescer 300 a 400 novos clientes por dia.

De acordo com o Relatório dos Sistemas de Pagamentos do Banco de Portugal (BdP) relativo a 2017, 70% dos pagamentos nesse ano no paós ainda foram realizados em numerário. Já as operações processadas pela rede multibanco “representaram 86% do total de pagamentos de retalho” e o uso dos cartões com leitura por aproximação, contactless, nas compras presenciais, corresponderam apenas a 1,6% das operações. “Estes números evidenciam a existência de uma margem de progressão significativa na adoção de soluções inovadoras nos pagamentos de retalho”, indica o relatório.

Novos sistemas a entrar

Até ao momento, as chamadas e-wallets (carteiras eletrónicas para substituir os cartões) da Apple Pay e Google Play não estão oficialmente disponíveis no país, embora estejam a crescer na Europa. Com a nova diretiva europeia de pagamentos (PSD2), que permite a entrada de novos operadores nos serviços de pagamentos, estas tecnológicas podem substituir os bancos.

Fernando Faria de Oliveira, presidente da Associação Portuguesa de Bancos, alertou em setembro que “a grande ameaça” à banca não são as fintechs, mas gigantes como Facebook, Amazon, Google e Apple.

Daí que exista já uma lista que inclui 175 instituições de moeda eletrónica registadas na União Europeia, que podem atuar no país – incluindo Amazon, Facebook, Revolut e Airbnb – e 364 de pagamento, como a Alipay, que passou a permitir (com a ajuda do BCP) aos milhões de utilizadores chineses pagar compras em Portugal por telemóvel. Há ainda 13 entidades com sede em Portugal, incluindo Raize, SIBS, Easypay e Ifthenpay.

Parte do crescimento das opções de pagamentos digitais e móveis justifica-se com o crescimento do comércio eletrónico. Dados do estudo apresentado pela Associação do Comércio Eletrónico no início do mês revelam que 3,5 milhões de portugueses já fizeram compras online e destes, 62% já o fizeram num dispositivo móvel – em destaque, PayPal e MBNet/MB Way, que já foram usadas por 41% e 42% dos portugueses que compram online.

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Vantagens dos pagamentos digitais

– Conveniência Tem o dinheiro sempre acessível e em diferentes dispositivos.

– Menos custos Algumas plataformas permitem reduzir os encargos com taxas, seja em transferências ou em pagamentos.

– Maior controlo Além de ser mais rastreável, os pagamentos digitais permitem um maior controlo dos gastos.

Desvantagens dos pagamentos digitais

– Privacidade O dinheiro digital está mais exposto a fraudes e a esquemas de roubo.

– Exclusão Soluções muito tecnológicas podem não ser facilmente usadas, sobretudo pela população mais idosa.

– Ficar offline Se por algum motivo ficar sem internet ou bateria, ‘perde’ a sua carteira.

Europa fecha porta (mas abre janela) às grandes tecnológicas

 Regulação e tecnologia. O novo mundo do dinheiro

Mudanças na regulação abrem portas à entrada de mais players. Mas nem todo o mercado tem regras definidas.

O facto de o dinheiro ser cada vez mais ‘zeros’ e ‘uns’ agrada às autoridades. Fica mais fácil seguir-lhe o rasto, seja para cobrança de impostos ou para detetar atividade criminosa – fraude, branqueamento de capitais ou financiamento do terrorismo. Por isso é que criminosos começaram a adoptar as criptomoedas, são mais difíceis de rastrear.

Mas a digitalização do dinheiro também está ter outra consequência: a transferência do negócio que era dos bancos para empresas tecnológicas, retalhistas, redes sociais, empresas de entretenimento e outras.

O ano de 2019 será marcado por uma revolução do dinheiro em Portugal. Os bancos vão passar a ter de deixar entidades terceiras aceder às contas bancárias dos seus clientes, desde que estes autorizem. A ‘revolução’ chega com atraso a Portugal após a transposição para a legislação portuguesa da Diretiva dos Serviços de Pagamentos europeia, a PSD2. Chegou em setembro de 2018, com quase um ano de atraso.

A plataforma tecnológica que vai fazer a gestão do acesso às contas bancárias está a ser desenvolvida pela SIBS e estará pronta em setembro deste ano. É todo um novo mundo que se abre para pagamentos, oferta de serviços de poupança e investimento.

Os não regulados

O melhor exemplo de alternativa ao dinheiro físico é, muito provavelmente, o das criptomoedas. Além de totalmente digitais, são uma alternativa ao próprio sistema do dinheiro tradicional. Como têm por base uma tecnologia de consenso conhecida como blockchain, uma rede imutável e distribuída de registos, as criptomoedas não respondem a qualquer entidade central.

Entre 3 e 7 de fevereiro, os dados mostram que a mais conhecida e valiosa das criptomoedas, o Bitcoin, teve uma média de 338 mil transações diárias em todo o mundo. A média de valor movimentado por dia também ronda os 4,5 mil milhões de euros, segundo o site CoinMarketCap.

Esta relação desequilibrada – muito dinheiro para poucas transações – justifica-se pelo facto de o volume de utilização ainda estar acima de tudo ligado ao conceito de criptomoeda enquanto ativo digital, como se se tratassem de ações. A grande questão para as criptomoedas é se um dia alguma terá a capacidade para se afirmar com a grande opção do dinheiro digital a nível global.

Giuseppe Perrone, líder do centro de excelência de blockchain para Portugal, Espanha e Itália da Ernst & Young, acredita que acabará por acontecer. “Penso que sim, mas penso que o mais correto é algo como um criptoeuro, uma moeda regulada por uma autoridade central. As criptomoedas não são reguladas e existe muita especulação”, diz-nos em entrevista.

“Penso que é uma oportunidade para regular uma moeda central com ajustes graças a um algoritmo automático. O Bitcoin nasceu do algoritmo”, diz ainda sobre uma hipotética criptomoeda amplamente aceite e usada.

Já Sebastião Lencastre considera que as criptomoedas ganham por “serem fácil e rapidamente transacionáveis” e com custos de transferências de “cêntimos”. Mas avisa: “são extremamente voláteis, pelo que não se aconselham grandes investimentos”.

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