Europa fecha porta (mas abre janela) às grandes tecnológicas

    A nível europeu, as mudanças legislativas podem mudar e complicar o negócio de Google, Facebook ou Amazon em 2019, mas também abrem um mundo de possibilidades na área dos pagamentos (os bancos que se cuidem).

    Por João Tomé e Rui da Rocha Ferreira

    2019, odisseia nos pagamentos

    O mundo tecnológico está em evolução constante, a um ritmo alucinante. O que rende hoje deixa de render amanhã porque surgiu uma nova tendência, uma nova tecnologia ou… um novo regulamento. A chegada, em 2018, da nova legislação europeia PSD2 (Revised Payment Service Directive) vai começar a ser aproveitada em 2019 não só por startups fintech, mas também pelos gigantes tecnológicos.

    A nova diretiva acaba com o monopólio dos bancos sobre a informação bancária e sobre os serviços de pagamentos dos clientes, obrigando-os a partilhar a informação com os serviços que os clientes desejem. Daí que a Bloomberg indique que “pode revolucionar a forma como 500 milhões de europeus gastam, pedem emprestado e investem”.

    A Google já começou a posicionar-se, a semana passada, como fintech na Europa com a obtenção de uma licença no mercado de crédito e pagamentos da Lituânia, passando a poder processar pagamentos, emitir dinheiro eletrónico e gerir wallets digitais.

    Porquê a Lituânia? A advogada sénior na Macedo Vitorino & Associados, Cláudia Martins, indica que se deve ao “curto prazo de obtenção da autorização, em que a burocracia é mais reduzida”, algo que pode também começar a ser feito pelo Banco de Portugal “de forma a encarar a nova realidade como uma oportunidade para Portugal servir de porta de entrada para as fintech”. 

    A Google até já tem uma licença de pagamentos eletrónicos no Reino Unido, mas esta nova pode estar relacionada com o Brexit. Na verdade, o Facebook também já tinha obtido uma licença para operar serviços financeiros na Irlanda (está a apostar nos pagamentos feitos pelo Messenger) e a Amazon Payments Europe estabeleceu-se no Luxemburgo, ainda sem resultados práticos.
    “A nova legislação é uma oportunidade para estes gigantes entrarem num mercado que até aqui era reservado (fechado) às instituições financeiras”, explica-nos Cláudia Martins, que tudo isto irá “mudar a prestação de serviços financeiros”, com as novas fintech a fazerem “concorrência à banca tradicional”. E devem os bancos estar preocupados? “Sim, porque passam a ter concorrência de empresas com dimensão, poder tecnológico, acervo de dados e poder da marca” e, algumas como “a Apple ou a Google”, “que transmitem maior confiança”.

    SIBS deixa alguns avisos

    A CEO da SIBS, Madalena Cascais Tomé, admite que o setor financeiro e dos pagamentos, vive há muitos anos “um momento de reinvenção e digitalização” e vê “a entrada de empresas de perfil tecnológico uma evolução lógica e previsível”. A líder da empresa de serviços financeiros que gere a rede de Multibanco e criou o MBWAY (”o primeiro serviço de transferências imediatas na Zona Euro”) deixa elogios às possibilidades dos consumidores beneficiarem da diretiva PSD2 e avisos.

    Madalena Cascais Tomé pede igualdade no campo de atuação, ou seja, que o contexto que permite a entrada das grandes tecnológicas na área “garanta que todos os intervenientes europeus, acedam, em situações de igualdade, aos serviços e controlados por estas, Android, Apple ou outros”. Ou seja, que serviços como o MB WAY possam estar disponível nas aplicações de instant messaging. Além do mais, por se tratarem de “empresas não europeias e não financeiras, importa igualmente assegurar a reciprocidade, nomeadamente na abertura de dados das suas contas de clientes a outras empresas com as quais estes possam optar por agregar a sua relação”.

    Outra das preocupações é com o facto das grandes tecnológicas “controlarem os canais de distribuição, e nalguns casos os próprios terminais”, o que “pode limitar as iniciativas de novos players, como startups ou fintechs, ou condicionar as formas de utilização pelos consumidores, com métodos desajustados às realidades específicas domésticas, locais ou setoriais”.

    A CEO da SIBS admite que, na empresa, acreditam que “um ecossistema vibrante de fintechs e novas startups é fundamental para a inovação e digitalização dos pagamentos, com diversidade e conveniência”. É nesse contexto que lançaram o SIBS PAYFOWARD, “que contempla o primeiro programa de aceleração em smart payments & fintech em Portugal e um dos pioneiros na Europa, e que vai já na sua 3ª edição”.

    O ecossistema de pagamentos e serviços financeiros baseados em tecnologia está em desenvolvimento, algo que Madalena Cascais Tomé vê como “uma grande oportunidade”, num contexto altamente dinâmico e competitivo, “onde a evolução tecnológica e digital está a alterar os paradigmas e modelos de negócio de vários setores e mercados”. Tudo isto constitui “um desafio”para todos. 

    O que é que a Google quer com os pagamentos na Europa?

    Um ano a ferro e fogo

    O Parlamento Europeu está prestes a levantar uma das maiores barreiras de sempre às grandes tecnológicas. A nova legislação para os direitos de autor, que pode ser aprovada já em janeiro, deverá obrigar empresas como Google, Facebook, Twitter, Microsoft e Amazon, entre outras, a fazer alterações nas suas plataformas.

    “Conteúdos que são hoje livremente publicados poderão deixar de o ser com a nova diretiva, o que obrigará as empresas a repensar o seu atual modelo de negócio, uma vez que passam a ser responsáveis pelos conteúdos publicados pelos utilizadores. O ónus de controlar todos os conteúdos e de impedir a publicação dos que não estejam licenciados recairá sobre as plataformas”, explica Cláudia Martins, advogada sénior na Macedo Vitorino & Associados.

    A especialista refere-se ao polémico artigo 13, que prevê a criação de filtros de upload – na prática, os conteúdos são revistos antes de serem publicados online e, se tiverem elementos protegidos por direitos de autor, nunca chegam à grande rede. Se chegarem, a responsabilidade legal é das plataformas. Mas também o artigo 11, que prevê que as empresas que agregam conteúdos de informação paguem uma licença aos titulares das notícias, pode levar a grandes mexidas. “Embora esta medida já tenha sido ensaiada na Alemanha e em Espanha, os exemplos destes dois países levam-nos a crer que grandes plataformas como a Google, que não se encontram dispostas a pagar pela publicação de conteúdos de imprensa, encontrem soluções alternativas.”

    Numa entrevista ao Dinheiro Vivo/Insider em novembro, Matt Brittin, líder europeu da Google, já tinha abordado esta questão. “Se nos pedirem para pagar por termos um trecho de informação de todas as publicações [no Google News], não podemos operar.”

    O próprio Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD), que passou a ser vinculativo em maio de 2018, pode trazer desafios acrescidos para as big tech. “Um dos objetivos destas tecnológicas era a venda e transferência dos dados dos seus utilizadores para entidades terceiras, o que é mais difícil desde que o RGPD se tornou aplicação obrigatória”, explica Margarida Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Profissionais de Proteção de Dados.

    E, se funciona na Europa, pode servir de inspiração para outras economias. “Outras áreas geográficas do globo começam também já de alguma forma a regular estas matérias. Mais tarde ou mais cedo os próprios EUA fá-lo-ão de uma forma muito mais forte do que estão a fazer hoje”, considera Alberto Rui Pereira, CEO do grupo IPG Mediabrands Portugal.

    O especialista em publicidade digital salienta, no entanto, a capacidade de resposta destas grandes empresas. “Sempre que há este tipo de legislação conseguem ser mais ágeis e mais rápidas em adaptar-se a elas. Pelos indicadores que vamos vendo não me parece que tenha havido para já qualquer recuo ou impacto nas receitas.”

    Para o mercado português não há dados oficiais, mas estima-se a Google e o Facebook dominem perto de 70% da publicidade digital. Os escândalos de privacidade e segurança não afastaram os clientes, mas mudaram-lhes a mentalidade. “As empresas estão muito mais atentas, muito mais exigentes em questões de segurança, de filtros e de tentarem efetivamente que a sua comunicação não esteja exposta a estas situações”, sublinha Alberto Rui Pereira.

    Quem também está mais atento é o utilizador comum dos serviços das tecnológicas – e isto será outro desafio a considerar nos próximos meses. “Há uma maior consciencialização das pessoas para temas como a privacidade dos seus dados”, começa por dizer Eduardo Santos, da Associação de Defesa dos Direitos Digitais. “Ao perceberem as práticas de algumas empresas, as pessoas ganham consciência e tendem a reagir. Os utilizadores vão ter um papel fundamental na definição das plataformas que queremos no futuro: como elas vão ser feitas e em que moldes.”