Estivemos à conversa com Manuela Veloso, portuguesa investigadora da Carnegie Mellon University (CMU), em Pittsburgh, EUA, e atual diretora de inteligência artificial do maior banco norte-americano, JP Morgan. Saiba o que é que ela pretende no novo desafio profissional e como antevê um futuro com a inteligência artificial a mudar a forma como vivemos.
Manuela Veloso passou pela fase da pré-história dos computadores, quando fazia mestrado e doutoramento; pela era da internet, “que trouxe uma mudança radical que levou a que tudo passasse a ser digital”; e pela era móvel do iPhone, das fotos fáceis e das apps. “Evoluiu-se imenso e agora temos mais conhecimento disponível a todos e muitos mais dados”. O reconhecimento de imagens, a tradução automática, a inteligência nas pesquisas e nas recomendações feitas à medida de cada um está por todo o lado, daí que diga: “É fascinante ver a evolução porque antes, por exemplo, era um pesadelo para que um robô reconhecesse os objetos que estavam à sua volta e hoje em instantes tem acesso a milhares de imagens”.
O desafio é agora diferente e passa por fazer com que o tratamento de dados seja mais inteligente e eficiente, ao ponto de poder justificar as decisões ou recomendações que dá. “Pouco se tem feito nesta área.” Manuela quer ver sistemas como o Google Maps ou mecanismos que determinam se alguém vai ter acesso a um cartão de crédito, a explicar porque escolheram essa opção e não outra. “Ao serem transparentes, esses sistemas estão a mostrar que valores têm e são mais justos e imparciais”. É este o tema que lhe tira o sono por estes dias. “Como é que fazemos um algoritmo justificar-se e explicar o processo?” O ‘cérebro’ das máquinas “busca melhor do que o dos humanos”, mas explica pior como lá chegou. Desde julho que está numa licença de dois anos do seu cargo de professora na CMU em Pittsburg por ter aceite o desafio da JP Morgan, mas continua ligada à Universidade. Vai cuidando à distância dos seus robôs Cobots e acompanha 10 estudantes de doutoramento e três de mestrado. Deixou de dar aulas, passou a viver em Nova Iorque desde julho e daqui a dois anos avalia o que fazer.
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E como é que chegou à JP Morgan? Admite que há uma luta por quem inova mais e está lá porque “eles queriam alguém com visão ampla que gerisse a investigação”, daí que esteja a reunir um grupo de investigadores. “Vamos escolher alguns dos 600 engenheiros na área de inteligência artificial (IA) da JP Morgan e contratar pessoas novas. Não há limites, pode ter 40, 100 ou 200”. O seu objetivo será desenvolver sistemas autónomos que podem ajudar a criar novas áreas de negócio. “Quero melhorar a parte da tomada de decisão dos sistemas, que possam reforçar a sua aprendizagem graças a feedback que vão tendo”. Daí que dê o exemplo, “quero um sistema de IA que não faça só a previsão do preço das ações de amanhã, mas possa ajudar as pessoas a tomar decisões consubstanciadas”.
“Devemos poder chegar a um restaurante, mostrar o menu ao nosso assistente digital e ele recomendar o prato certo consoante o que comemos noutros dias, o que gostamos e o que nos faz bem à saúde”
Os ganhos de IA para comum dos mortais
E o utilizador comum, em que é que pode beneficiar no futuro da IA? Manuela espera que as assistentes pessoais digitais como a sua Alexa – já não vive sem a Alexa de manhã e já não limpa o chão de casa há 15 anos graças à robô Roomba –, os robôs e os sistemas de IA em geral que já se vêm na Google, Amazon, Uber e Netflix evoluam e cheguem a outras áreas. Para que escola o meu filho deve ir? Um sistema pode analisar onde a pessoa vive, o que a criança gosta e fazer a melhor recomendação “porque a maior parte das decisões são hoje feitas com base na intuição e nas conversas com conhecidos, falta uma base de dados em que confiem e a que possam recorrer”. Onde devo ir de férias? O que devo estudar e onde? O IA vai poder personalizar a educação para o nível de conhecimentos da pessoa, tal como vamos poder personalizar a prática de medicina com doses de medicamentos à medida de cada um.
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“Devemos poder chegar a um restaurante, mostrar o menu ao nosso assistente digital e ele recomendar o prato certo consoante o que comemos noutros dias, o que gostamos e o que nos faz bem à saúde”. Manuela, que adora cozinhar comida portuguesa e já quase só lê em ecrãs, fica fascinada com os novos serviços que vão surgindo e destaca a Didi Chuxing: “a Uber chinesa faz previsão das zonas que vão precisar de mais transportes e demoram apenas dois minutos a chegar”. Gostava de ver isso aplicado a outros serviços para evitar filas enormes em locais como os serviços públicos. “Há falta de previsão. Por exemplo, no Natal é fácil perceber que vão haver mais pessoas em certos serviços.” Nesse aspeto a China “está muito avançada em vários serviços por ter muito dinheiro e ser uma aposta estratégica”.
Sobre a ética na IA, Manuela desvaloriza um pouco os alertas de Elon Musk. “O IA não é um problema resolvido, não está acabada. Está em construção, por isso, todos os problemas que surgem a nível legal fazem parte de melhorar os processos”. Há muito para fazer, daí que “todas as crianças devem estudar IA porque vão ser precisas muitas cabeças humanas para esta área.” Segue com fascínio o desenvolvimento de startups portuguesas como a Unbabel ou mesmo a Uniplaces e congratula-se com Portugal aderir à moda dos jovens abrirem startups. A nível internacional admite que a Google está à frente do Facebook ou da Amazon em IA e que a China tem projetos incríveis. Elogia a empresa DeepMind, que pertence à Google, e os avanços na medicina. Fala ainda que os seus Cobots são mais inteligentes dos que os incrivelmente ágeis robôs da Boston Dynamics, do seu velho conhecido professor (Mark Raibert).
A importância de ser mulher a liderar nos EUA
Os anos de investigação nos EUA e de prémios fizeram-na esquecer um pouco a importância que tem ganho. “Vinha no avião de volta a Portugal para as férias e a pensar como é relevante ter uma portuguesa a gerir a IA da JP Morgan”, explica Manuela que passou umas semanas de agosto entre o norte e o Algarve a ver amigos e família. Ser mulher é algo tornou o seu percurso um pouco mais difícil. “Nunca liguei muito a isso porque venho de uma família onde não importa se é homem ou mulher, mas tive várias reuniões onde as opiniões dos homens é que eram valorizadas”. Daí que hoje, já em cargos de chefia, já reclame os méritos das duas ideias quando assim tem de ser. “Há homens que não estão habituados a ter mulheres com opiniões ou papéis de relevo”.
Fala com orgulho dos seus Cobots (robôs autónomos), que andam pelo escritório sozinhos, entregam encomendas e interagem com quem passa. Um dos projetos que está a ser feito desde o início deste ano, em parceria com a Sony, são robôs que possam preparar e entregar comida, um desafio complicado “que vai demorar anos”. Já conseguiu que os Cobots peçam ajuda quando precisam e expliquem o que lhes aconteceu.
O desafio agora é que os robôs possam detetar anomalias, acidentes e os imprevistos e, no limite, chamar o 112. “Um robô que anda por um hospital ou centro comercial pode reportar uma rotura de água ou um fogo”. Só quando chegarmos aí “teremos robôs e sistemas verdadeiramente inteligentes”. Dá ainda o exemplo dos carros autónomos: “estão a ser testados e não fazem mais nada que não executar as tarefas previstas, se alguém gritar por ajuda ao lado de um carro destes a pessoa é ignorada, mas não tem de ser assim”.
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