Chegou o feminismo digital: comunidades como a Portuguese Women in Tech (PWIT) querem que as mulheres sejam tão reconhecidas como os homens nesta área. A DN Insider foi saber como é que estes movimentos procuram maior equilíbrio na área da tecnologia.
A primeira pessoa que se destacou na área da programação foi uma mulher. Em pleno século XIX, a britânica Ada Lovelace foi pioneira na escrita de linhas de código. Um século mais tarde, na década de 1940, a almirante Grace Hopper esteve na linha da frente para saber mexer no então supercomputador eletromecânico Harvard Mark I. Em 1969, o saber de Margaret Hamilton permitiu que Neil Armstrong e Buzz Aldrin pisassem solo lunar, durante a missão Apollo 11, da Nasa.
Estas mulheres têm um lugar marcado na história da tecnologia e são recordadas cada vez que Catarina Campino recebe novos alunos na Academia de Código, considerada uma das primeiras escolas de programação em Portugal. Mas o género feminino ainda só representa 16% da força de trabalho especializada nas áreas da ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM), segundo os mais recentes números do Eurostat.
E em Silicon Valley apenas 2% do financiamento vai para as mulheres. Porque é que ainda ouvimos falar tão pouco do papel das mulheres nas STEM? Como se pode mudar este panorama? A aposta na educação e na cultura das empresas é apontada pelas finalistas dos PWIT Awards, os primeiros prémios de sempre atribuídos em Portugal para reconhecer o papel das mulheres na área da tecnologia e o seu contributo para equilibrar o género, como as principais rotas para a igualdade digital.
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A necessidade de transformar mentalidades começa desde que os bebés dão os primeiros passos. “As crianças são criadas e influenciadas pela sociedade para irem para certo tipo de atividades, enquanto os meninos deveriam ir para outras. Aqui, cria-se logo uma diferenciação e as meninas acham que tecnologias, programação, jogos, são para os geeks. Deixem as meninas e os meninos escolher o que gostam sem influências externas”, propõe Marília Felismino Simões, especialista em análise de dados da ML Analytics.
Numa das poucas iniciativas em Portugal, destaca-se a IBM com o programa EX.I.T.E. (EXplorar os Interesses pela Tecnologia e pela Engenharia), desde 1999 em todo o mundo, dirigido a raparigas entre os 10 e os 13 anos, com o objetivo justamente de promover carreiras em ciência e na tecnologia.
“Com atividades de programação, robótica, gestão de projeto e comunicação, alinhadas com as áreas estratégicas da IBM e também em linha com a agenda do Ministério da Educação, o EX.I.T.E. tem-se revelado uma experiência única e enriquecedora para as mais de 400 jovens raparigas que já participaram nesta iniciativa”, explica Rita Miguel, marketing, communications & citizenship leader IBM Portugal.
“É um programa que conta já com 14 edições e que ano após ano tem permitido dar um contributo válido para um cenário mais equilibrado entre o número de homens e de mulheres que escolhem cursos ligados às engenharias e às tecnologias, independentemente do seu contexto social ou económico.”
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“Mais do que uma questão de género ou paridade, a entrada do sexo feminino nas empresas de tecnologia necessita de uma mudança na estrutura educacional e da sociedade”, defende Romana Ibrahim. “É necessário ensinar às mulheres que é normal decidirem, liderarem, escolherem cursos ligados às engenharias e/ou tecnologias”, acrescenta uma das fundadoras da startup Icontrends, que criou a aplicação para guardar faturas Keep Warranty e é um dos rostos em ascensão no caminho para o feminismo digital no nosso país.
Só que a falta de mulheres nas tecnologias é um processo que conta com várias décadas de desvantagem. “Quando comparado com outros cursos superiores, as áreas de engenharia têm, regra geral, menos mulheres inscritas e a finalizar os cursos.
Isto deveu-se, em parte, a alguns preconceitos que estiveram enraizados na nossa cultura sobre a especialização mais apropriada para cada sexo. A mulher, quando incentivada a seguir uma carreira, era muitas vezes direcionada para áreas ligadas à educação, saúde, literatura ou artes”, destaca Isabel Portugal, especialista de dados da plataforma tecnológica HostelWorld e uma das premiadas pela PWIT na edição deste ano.
É por causa disto que “22% das mulheres têm expectativa de seguir uma carreira em engenharia ou em ciências, enquanto 74% preferem seguir uma carreira em saúde”, acrescenta Isabel Portugal, com base nos estudos PISA da OCDE. Nos homens, 48% querem ir para a saúde, enquanto 24% querem apostar nas áreas tecnológicas.
A pouca visibilidade do papel das mulheres na tecnologia também é apontada como uma das principais dificuldades. E todos somos culpados disso.
“O trabalho que fazemos não é tão reconhecido por não termos mulheres suficientes em posições de liderança. Sempre que há um anúncio de um novo produto, de uma nova startup ou de uma ronda de investimento, vemos sempre os homens que lideraram esses projetos na comunicação social”, lamenta Catarina Macedo, gestora de programa na Xbox.
A trabalhar em Seattle, nos Estados Unidos, esta portuguesa acrescenta que, seja deste ou do outro lado do Atlântico, “ainda há muito trabalho a fazer para conseguirmos alcançar rácios saudáveis e balanceados entre homens e mulheres nas equipas de empresas tecnológicas, e consequentemente em posições visíveis de liderança”.
A mudança tem sido feita em Portugal nos últimos anos graças à criação de comunidades como a Portuguese Women in Tech (PWIT). Fundada em 2016 por Liliana Castro, pretende mostrar o papel das mulheres no empreendedorismo e tornar o género no mundo tecnológico bem mais equilibrado, tendo em conta que “a batalha pela igualdade não pode durar cem anos”.
Nos últimos dois anos, além do lançamento de dois guias, esta comunidade também criou uma lista que permite aumentar o número de mulheres em conferências. Em outubro, entregou os primeiros prémios de sempre na área da tecnologia, em nove categorias, na Alfândega do Porto.
Este tipo de comunidades tem sido fundamental para “fortalecer a confiança, motivação e rede de contactos das mulheres nesta área”. Para Isabel Portugal, estes grupos “originam um efeito em cadeia: mais mulheres começam a formar comunidades, promovem workshops e a partilhar de oportunidades de emprego em STEM”.
A especialista de dados da HostelWorld detalha que estas pessoas “não potenciam apenas o talento de outras mulheres da nossa geração [entre 25 e 45 anos]; são também exemplos a seguir e ajudam a desconstruir alguns preconceitos que temos vindo a alimentar nas gerações mais novas. Temos de continuar este caminho, em que fomentamos o espírito de iniciativa e em que damos visibilidade ao talento e ao trabalho que temos vindo a criar”, salienta a especialista .
Mas este esforço pela igualdade no mundo tecnológico precisa de muito mais iniciativas, entendem as mulheres que conversaram com a DN Insider. “O foco da mudança deve continuar a estar em três grandes eixos de atuação: educação; políticas nacionais/europeias; e criação de redes de contactos”, define Patrícia Candeias, responsável pela comunidade do Enter, o programa de inovação do grupo Altice em Portugal e que também se associa a esta batalha.
Romana Ibrahim entende que “ao mesmo tempo que é necessário continuar a desenvolver e a apoiar este tipo de iniciativas” é preciso “criar sinergias com entidades internacionais que, juntamente com a PWIT, possam trazer mais visibilidade e notoriedade a estas empreendedoras e criar um ecossistema favorável ao seu desenvolvimento e à entrada de cada vez mais empreendedoras”.
A cofundadora da Icontrends refere-se, por exemplo, à Women in IT Awards, iniciativa lançada em 2015 pelo portal de informação tecnológica Age em Londres e Nova Iorque. Estes prémios já se transformaram numa minidigressão mundial para celebrar o papel da mulher na tecnologia e vão chegar à Ásia e a Silicon Valley entre o final deste ano e o primeiro semestre de 2019.
O feminismo digital também já atingiu regiões como o Médio Oriente ou mesmo a Austrália, onde também já foram formadas comunidades para reconhecer o papel das mulheres nesta área.
O papel das mulheres na tecnologia também é uma questão cada vez mais relevante para a maior cimeira tecnológica do mundo, graças ao programa Women in Tech, lançado em 2016. Na mais recente edição da Web Summit, 44,5% dos participantes foram do sexo feminino, conforme Paddy Cosgrave mostrou no último dia do evento – para combater a polémica criada inicialmente com uma fotografia em que o líder da conferência aparecia apenas com homens em palco.
Foi, por exemplo, no espaço principal da Web Summit que Helen Chiang explicou o sucesso do jogo Minecraft e que Brenda Freeman, como diretora de marketing, mostrou o sucesso da plataforma Magic Leap.
O caminho para a igualdade digital também pode ter uma resposta no LinkedIn, entende Marília Felismino Simões. “Quando há anúncios de emprego para estas áreas, são essencialmente focados nos vários requisitos técnicos que o candidato deverá ter. Aqui os homens ficam em vantagem.”
A especialista da ML Analytics considera que “se colocassem anúncios pedindo não só algumas componentes técnicas razoáveis mas também componentes mais pessoais e depois darem condições para aprendizagem com ações de mentoring, como já se faz muito na Holanda, esse gap acabaria por ser reduzido. Seria muito mais vantajoso para todos, porque para se fazer um bom projeto que seja de facto um sucesso para o negócio da empresa necessita de muito mais do que uma boa implementação. Tem de estar a implementar o que é de facto necessário e depois tem de ser integrado nos processos e cultura da empresa, de outra forma vai para a gaveta. E as mulheres fazem este trabalho melhor.”
Para Catarina Campino, a melhor maneira de lutar contra o preconceito é “sublinhar o que há de (bom em) comum em detrimento de assinalar ainda mais as diferenças”. No final, a luta pelo feminismo digital pode mesmo deixar de ser necessário.
Quando as diferenças se esbaterem, entende Mariana Gomes, da HUB Cargo, as iniciativas para a igualdade digital, como a comunidade Portuguese Women in Tech, “deixarão de fazer sentido. E o género será, como deveria ser, uma característica tão irrelevante como a cor do cabelo”.
*Este artigo foi originalmente publicado na revista DN Insider de novembro/dezembro.