“Imparável” e sem medo do futuro, a Web Summit foge cada vez mais à tecnologia

    Foto: Sam Barnes/Web Summit via Sportsfile

    Brexit, guerra comercial, privacidade e sustentabilidade foram alguns dos temas fortes desta edição, que já não gira só à volta da tecnologia.

    Por Ana Laranjeiro, Ana Marcela, Ana Sanlez, Ana Margarida Pinheiro, Cátia Rocha, João Tomé

    Há três anos a revolução era silenciosa, dizia Marcelo Rebelo de Sousa. Hoje, é ensurdecedora. A cimeira que nasceu tecnológica é hoje um evento sem medo de enfrentar os temas que dividem o mundo. Na mensagem que encerrou a quarta edição da Web Summit em Lisboa, o Presidente da República enalteceu o papel de Portugal como agregador da comunidade “que vê além do seu tempo” e “não tem medo do futuro”.

    “A Web Summit antecipou as mudanças que a revolução digital está a trazer. Com Stephen Hawking falámos de ciência, morte, passado e futuro. Com Al Gore antecipámos as alterações climáticas, quando tantos diziam que não era um problema. Negaram a realidade. Com Guterres falámos de multilateralismo quando todos falavam de unilateralismo. Este ano, com Michel Barnier falámos do papel da Europa num mundo global. E com Vestager falámos da concorrência no digital”, ressalvou Marcelo.

    No palco principal de uma Altice Arena com lotação quase esgotada, Marcelo despertou aplausos quando reconheceu a fraqueza das “manipuladoras” instituições internacionais, que estão “muito atrás” no que toca a encarar os desafios que a Web Summit coloca no centro da discussão. “Precisamos de regras mais fortes, de uma democracia mais forte. Precisamos de uma cultura onde ninguém fica para trás”.

    A cimeira ficará em Lisboa “pelo menos” até 2028, sublinhou Marcelo, reforçando o “pelo menos”, dando a entender que veria com bons olhos a escolha de Portugal como morada definitiva de Paddy Cosgrave e companhia. Entre o presidente da República de Portugal e o “pai” irlandês da Web Summit houve abraços e elogios mútuos. “Paddy é o nosso homem. E nós somos imparáveis”.

    A Web Summit recebeu perto de 70 500 pessoas, quase metade delas mulheres, provenientes de 163 países. Passaram pelos 22 palcos do evento 1206 oradores, mais de duas mil startups e 1200 investidores. A cimeira regressa no próximo ano, de 2 a 5 de novembro.

    Pode alguma coisa ser privada hoje em dia?

    A abordagem aos temas de privacidade tem sido uma constante nas edições da Web Summit – e 2019 não fugiu à regra. Esta ano, logo na cerimónia de abertura, Edward Snowden foi o protagonista de uma chamada à distância, para explicar as razões que o levaram a denunciar o maior esquema de vigilância conhecido até hoje. A partir da Rússia, onde está em asilo político, o norte-americano afirmou que “não são os dados que estão a ser explorados, são as pessoas”. Sobre o presente e o momento que o mundo tecnológico atravessa, com as chamadas big tech pressionadas, Snowden deixou clara a mensagem. “O modelo de negócio é o abuso”, diz Snowden sobre empresas como a Google, Amazon ou Facebook.

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    No dia seguinte, a Altice, operador responsável pela infraestrutura de telecomunicações da Web Summit, revelou que o dia da intervenção de Snowden foi “particularmente agitado” a nível de cibersegurança, embora “sem incidentes”, garantiu Alexandre Fonseca, da Altice Portugal.

    Se Edward Snowden é conhecido como o “whistleblower” original, a cimeira tecnológica deste ano contou com a presença de outra delatora, mas desta vez das práticas da Cambridge Analytica. Brittany Kaiser trabalhou para a empresa britânica, num cargo de elevada responsabilidade. Em 2018, acabaria por pôr um fim ao vínculo com a empresa, ao denunciar a manipulação de dados oriundos de redes sociais como o Facebook, para apresentar mensagens direcionadas a eleitores suscetíveis durante momentos eleitorais. Kaiser alertou para a prática da manipulação de dados, que continua a ser feita por várias empresas. Durante as várias intervenções que fez ao longo dos dias da Web Summit foi clara no recado: “Mark Zuckerberg está a ajudar” as empresas que manipulam dados. Apelou ainda a uma maior regulação das empresas digitais e das políticas de dados. “Não tenho problema nenhum em partilhar os meus dados, quero é que as empresas sejam honestas comigo”, atirou.

    Numa sessão de “futurologia”, a antiga diretora de desenvolvimento de negócio da Cambridge Analytica, hoje ativista da proteção de dados, avisa que os eleitores estão “tão desprotegidos em 2020 como estavam em 2016.” E, se a campanha de Donald Trump está hoje mais profissionalizada, será meio caminho andado para afastar os eleitores das urnas.

    Recados às tecnológicas

    Sendo uma cimeira tecnológica que discute realidades globais, a Web Summit não deixou passar em claro o tema da divisão das grandes tecnológicas. Se o assunto tem sido amplamente discutido do outro lado do oceano, também não fugiu à lista de temas quentes do evento em Lisboa.

    Uma das declarações mais elusivas sobre a postura da União Europeia sobre o tema pertence à comissária Europeia para a Justiça, Consumo e Igualdade de Género, Vĕra Jourová. “Dividir as big tech é o nosso último recurso, é a bomba atómica que não queremos usar.”

    Vĕra Jourová abordou ainda o tema da guerra comercial entre Estados Unidos e a China. “Não vejo nenhuma razão para que a Europa deva ser o campo de batalha entre os Estados Unidos e a China nesta questão, nós temos regras, temos o nosso nível de proteção para os europeus.”

    Já Margrethe Vestager, comissária Europeia da Concorrência, pautou a sua intervenção pelo destaque de que a “tecnologia pode ser nova, mas os nossos valores continuarão a ser os mesmos”, tendo em conta os direitos humanos. Relativamente às práticas das tecnológicas, cuja atuação tem vindo a manter debaixo de olho, reconhece algumas mudanças. “Em primeiro lugar, estão diferentes, na sua abordagem, na forma como estão a unir-se. Mas, se vejo alguma mudança, é basicamente para terem ambições ainda maiores.”

    A divisão das grandes tecnológicas, que muitos acusam de terem crescido demasiado e terem hoje um poder extremo, também foi abordada durante a intervenção de Vestager. “Do ponto de vista da concorrência, era preciso acontecer alguma coisa que fizesse com que a divisão das big tech fosse o último recurso. Até agora, não temos um problema assim tão grande que faça com que isso seja a única solução”, aponta.

    Brexit no palco e nos corredores

    Em junho de 2016, os britânicos, em referendo, decidiram sair da União Europeia (UE). É a primeira vez que um país decide acionar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa para abandonar o bloco económico. Ao longo de mais de dois anos, Bruxelas e Londres travam negociações para um divórcio que, neste momento, está agendado para 31 de janeiro de 2020. O processo negocial andou ao sabor de avanços e recuos, que culminaram em sucessivos atrasos na data de saída. O Brexit voltou a marcar presença na Web Summit 2019. Tanto no palco como nos corredores.

    Tony Blair, antigo primeiro-ministro, regressou este ano à cimeira e reiterou a sua clara oposição ao Brexit. “Acho que o Brexit é uma ideia terrível, ainda espero que não aconteça. Acredito que ainda é possível haver outro referendo, o que seria bom porque as pessoas estão hoje muito mais informadas. E se lhes for dada a oportunidade de refletir outra vez, o resultado de um novo referendo será diferente”.

    Michel Barnier, chefe das negociações da UE, veio a Lisboa dizer que o Brexit é “uma escola de paciência e tenacidade” e que este processo não termina com a assinatura do acordo. “Está em causa o futuro das nossas vidas e do nosso continente. As consequências do Brexit têm sido subestimadas”.

    Ainda antes de o calendário marcar 31 de janeiro, os britânicos vão às urnas para escolher o próximo governo. Brittany Kaiser, antiga diretora de desenvolvimento de negócio da Cambridge Analytica, firma que terá sido contratada para influenciar o referendo do Brexit, de passagem para capital portuguesa não escondeu que os fantasmas do passado podem voltar.

    “A partir do momento em que a maior plataforma publicitária a nível mundial (Facebook) decide que não vai escrutinar” as mensagens envolvidas nos anúncios políticos, sobram dúvidas sobre a total transparência dos escrutínios. “Não há forma de garantir que as eleições [de 12] de dezembro [no Reino Unido] vão ser transparentes”, salientou.

    Transportes mais verdes e que desafiam a gravidade

    Transportes partilhados, automóveis que vão romper os céus e veículos cada vez mais sustentáveis. O futuro da mobilidade esteve em grande destaque no segundo dia da cimeira tecnológica, onde empresas como a Lilium ou a Volocopter desafiam a gravidade e parecem colocar no presente os carros que Hollywood criou para ilustrar o futuro.

    Os táxis aéreos, que Alexander Zosel, CEO da Volocopter, garante que chegam “em dois ou três anos” são apenas um exemplo do que está a ser feito. Ao todo, diz Daniel Wiegand, da Lilium, contam-se mais de 200 empresas a trabalhar para colocar os automóveis no ar.

    Estas duas empresas são completamente verdes, uma realidade que parece ter chegado em força à indústria dos transportes. Os combustíveis fósseis parecem estar a ficar para trás, que o diga a Airbus, maior fabricante de aviões, que admitiu estar a trabalhar para por no ar o primeiro avião híbrido, já em 2021.

    Mas a mobilidade do futuro também se vai fazer de partilha e de meios cada vez mais sustentáveis. O carro não será usado para grandes distâncias e, quando for opção, será partilhado, garantem as empresas que já operam neste nicho, como é o caso da Bolt.

    A automação, num mundo onde os robôs estão a ganhar várias formas, também veio para ficar. Menos comum é ainda a computação quântica, que pode ajudar a fugir ao trânsito e que a portuguesa Carris fez questão de testar já nesta edição da Web Summit.

    Huawei a abrir, bloqueio dos EUA à China a fechar

    A conferência começou na segunda-feira com a Huawei a falar na promessa do 5G e em como quem aderir à inovação da empresa chinesa nessa área “vai ficar a ganhar”. Guo Ping, o chairman Huawei fugiu do tema do momento: o bloqueio dos EUA à Huawei, que já está a limitar o uso do ecossistema da Google pela empresa chinesa nos novos modelos de smartphones.

    O líder da Huawei deixou ainda um pequeno aviso indireto aos EUA. Por um lado pediu à comunidade mundial de programadores que contribua para os ecossistemas da empresa de serviços móveis e de 5G, por outro explicou que, na área do 5G, “os maiores vencedores serão os parceiros da Huawei”.

    Em sentido contrário, no último dia do evento, já esta quinta-feira, o responsável pela pasta da tecnologia da Casa Branca de Donald Trump deixou críticas diretas ao Governo chinês e à Huawei e pediu à Europa que faça “um escudo tecnológico” à China. “Querem estender o autoritarismo da China ao ocidente”, disse Michael Kratsios, com acusações de roubo de propriedade intelectual e que, através do 5G, “a China pode minar o ocidente”.

    O responsável tecnológico, há alguns meses no cargo, alertou os parceiros para rejeitar a tecnologia da Huawei “por estar, como todas as empresas chinesas, sob o controlo do Estado chinês” e apelou que o ocidente se junte a nível tecnológico e evite a China. No final, ainda foi vaiado pelo público.

    Entretanto, a Huawei respondeu em comunicado rejeitando “veemente as declarações falsas” do CTO dos EUA, negando que esteja sob o controlo do governo chinês. “O que Kratsios e a atual administração dos EUA estão a fazer é um insulto aos valores europeus e vai resultar numa desaceleração das ambições de se tornarem um polo de inovação”.

    Na cimeira tech, 5G foi tema

    O 5G marcou presença e não foi só com a guerra entre os Estados Unidos e Huawei. Os operadores nacionais aproveitaram os 70 mil participantes para reforçar redes e fazer pilotos no 5G. A Altice Portugal instalou inclusive uma antena 5G na Altice Arena, usando frequências cedidas pela Anacom. “Fizemos uma video chamada mas ainda não há operação comercial que só vamos ter no final de 2020, porque aguardamos cronograma sobre qual será o modelo adoptado para o 5G”, diz Alexandre Fonseca, CEO da Altice Portugal, na War Room da operadora, na FIL. “Já vamos tarde para Portugal seja como for”.

    Robôs atléticos da Boston Dynamics brilharam

    A robô Sophia voltou ao palco da Web Summit, trazendo um irmão mais velho chamado Phil (inspirado no autor Philip K. Dick), mas o entusiasmo foi ainda mais pequeno do que aconteceu noutros anos. Quem brilhou mesmo foi o cão robô da Boston Dynamics, Spot, que andou pelo meio do público, recebeu festas e foi ter com o CEO da empresa ao palco principal no último dia. Marc Raibert explicou as funcionalidades dos seus robôs atléticas, cujos vídeos no YouTube tornam-se rapidamente virais. A empresa já está a vender a algumas empresas o modelo ao estilo cão, mas tem o humanoide Atlas em protótipo e espera revolucionar em indústrias variadas, da segurança, à construção, passando pelo entretenimento.

    Moda. Sustentabilidade para garantir a próxima coleção

    Na cimeira, também da sustentabilidade, o sector da moda fez um mea culpa e assumiu que não há um caminho possível que não o de uma indústria mais ambiental. A sustentabilidade “veio para ficar e a indústria precisa de resolver estes problemas ou não terá materiais para fazer a próxima coleção”, disse Katrin Ley, responsável da Fashion for Good, uma plataforma de inovação para uma moda mais sustentável.

    O sector é responsável por 60% das emissões de dióxido de carbono e tem uma pesada pegada ecológica. Os números são avassaladores. Em média compramos hoje mais 60% de roupas do que há 15 anos, mas cada peça de roupa só fica no roupeiro metade do tempo. Mais, estima-se que cerca de 60% de todas as roupas produzidas sejam queimadas ou acabem em lixeiras, segundo números da Fashion for Good.

    Pagamentos Cashless

    A edição de 2019 da Web Summit, foi a primeira totalmente cashless, ou seja, em que as notas e moedas não foram de todo necessárias. No primeiro dia do evento, 5 de novembro, foram realizadas quase 22 mil compras na cimeira tecnológica, de acordo com a SIBS, entidade com a Web Summit estabeleceu uma parceria para que o evento fosse cashless. Entre os estrangeiros, os britânicos foram quem mais operações fez. O pico das transações nesta cimeira que trouxe a Lisboa 70 mil participantes, ocorreu às 13h31, sendo que o consumo médio no primeiro dia ficou pouco acima dos 14 euros.

    No segundo dia, o volume de compras diminuiu ligeiramente, tendo ficado acima das 19 mil, com a hora de almoço (13h25) a registar o pico de transações, sendo que o consumo médio na quarta-feira a atingir os 13,70 euros. No último dia de cimeira, foram registadas mais de 13 mil compras no recinto, sendo o consumo médio diário foi de 13 euros.

    Web Summit: Do palco principal ao Pitch, não faltam startups portuguesas