O artigo 13 não é a única dor de cabeça da reforma que pode mudar a Internet

    direitos de autor, reforma europeia
    Fonte: Pixabay

    Não há “fórmulas mágicas” para explicar o assunto complexo que é a reforma dos direitos de autor na União Europeia – mas há quem tente, como é o caso da Associação D3. Os artigos 11 e 13 são os mais polémicos, mas não são os únicos pontos “quentes” da reforma que aí vem, avisa a associação, que tem sido uma das vozes mais críticas da proposta.

    Esta semana, um conjunto de vídeos de youtubers portugueses e, em especial, do youtuber Wuant, despertou muita gente para a reforma europeia dos direitos de autor e, acima de tudo, para dois artigos específicos: o artigo 11 e 13. Mas, afinal, o que são estes dois artigos e que alterações é que podem trazer à Internet, como a conhecemos atualmente?

    O assunto não é de agora, ainda mais para a D3. A reforma dos direitos de autor já é discutida desde 2016 e, ao longo deste ano, também tem vindo a ser alvo de votações no Parlamento Europeu. “A D3 é extremamente crítica de vários pontos desta reforma, com principal destaque para os artigos 3, 4, 11 e 13”, refere Eduardo Santos, advogado e presidente da Associação D3.

    No site da D3, é possível encontrar uma extensa lista de perguntas e respostas, onde se pode compreender melhor o que implica esta reforma e a diretiva que está em cima da mesa. Mas, afinal, o que é que motiva esta reforma?

    “A Internet veio democratizar a produção cultural. Vive-se uma época de saudável efervescência de actividade criativa e ampla produção de conteúdos na rede. No entanto, a lei não acompanhou essa evolução e – pasme-se – muitas dessas actividades caem hoje numa área cinzenta a nível legal. A legislação vigente tem mais de 17 anos e vem de uma altura em que a Internet pouco tinha a ver com a de hoje”, explica a D3, na sua página online onde é disponibilizado um conjunto de respostas a perguntas frequentes sobre as alterações nos direitos de autor na União Europeia.  

    Os artigos da discórdia
    Antes de mais, há que relembrar o conteúdo dos artigos em causa. A atual proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos direitos de autor no mercado único digital é conhecida, podendo ser consultada online. Os artigos mais polémicos são o 13.º, que já adquiriu muitos cognomes, como o artigo da “máquina de censura” ou “filtros de upload”, e o artigo 11.º.

    O texto original do artigo 13.º na proposta de diretiva refere que “os prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e facultam ao público acesso a grandes quantidades de obras ou outro material protegido carregados pelos seus utilizadores devem, em cooperação com os titulares de direitos, adotar medidas que assegurem o funcionamento dos acordos celebrados com os titulares de direitos relativos à utilização das suas obras ou outro material protegido ou que impeçam a colocação à disposição nos seus serviços de obras ou outro material protegido identificados pelos titulares de direitos através da cooperação com os prestadores de serviços”. Este artigo menciona ainda o “uso de tecnologias efetivas de reconhecimento de conteúdos, que devem ser adequadas e proporcionadas”.  

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    Para a Associação D3, é aqui que reside uma das principais questões: o recurso a estas tais tecnologias de reconhecimento de conteúdos.

    “Filtros automáticos não reconhecem as excepções, são cegos”, explica Eduardo Santos, da Associação D3.

    Também o artigo 11.º, conhecido como o artigo ‘taxa do link’, está a suscitar questões, ainda para mais tendo uma “interpretação muito difícil, até para especialistas”, conforme critica a Associação D3.

    Além disso, este artigo acarreta ainda outra preocupação: “Qualquer lei ou sistema (como aconteceu com as páginas do Facebook) que reduza a circulação de notícias de jornalismo profissional, vai fazer aumentar as chamadas fake news, porque as pessoas não vão deixar de usar a Web, nem de partilhar conteúdos”. Eduardo Santos acrescenta ainda que se as pessoas não podem “partilhar notícias de jornalismo profissional, vão partilhar as outras”. Vale a pena recordar que a questão da desinformação e das notícias falsas está na ordem do dia.

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    Mais artigos a ter em conta
    Entre as várias alíneas da proposta de diretiva, há mais questões que merecem atenção, com a D3 a alertar para o artigo 3.º e o artigo 4.º. No primeiro caso, o artigo prevê uma exceção para “fins de prospeção de texto e dados (text and data mining)”, que está restrita a organizações de investigação, deixando de fora jornalistas, cidadãos, startups e instituições de património.

    Também o artigo 4.º merece atenção, com a D3 a alertar para a restrição da utilização de obras para fins de ensino. “Segundo a directiva anterior, Portugal poderia ter uma exceção para fins de ensino sujeita apenas a duas condições específicas: atribuir a autoria e ser usada para fins não comerciais. A nova exceção proposta para a utilização digital das obras acrescenta mais duas restrições: a exceção só pode ser usada dentro de estabelecimentos de ensino e em redes electrónicas a que só alunos e professores podem aceder. Professores que queiram usar plataformas públicas de blogs, vídeo, etc. não estarão protegidos por esta exceção”, avisa Eduardo Santos.

    “Segundo a directiva anterior, Portugal poderia ter uma exceção para fins de ensino sujeita apenas a duas condições específicas: atribuir a autoria e ser usada para fins não comerciais. A nova exceção proposta para a utilização digital das obras acrescenta mais duas restrições: a exceção só pode ser usada dentro de estabelecimentos de ensino e em redes electrónicas a que só alunos e professores podem aceder. Professores que queiram usar plataformas públicas de blogs, vídeo, etc. não estarão protegidos por esta exceção”.

    A resposta em carta aberta aos youtubers
    Ainda esta semana, através de uma carta aberta, Sofia Colares Alves, representante da Comissão Europeia em Portugal, dirigia-se aos youtubers que partilharam vídeos sobre o tema.

    “Os memes não vão desaparecer. Aliás, os memes são protegidos por uma exceção na Diretiva de Direitos de Autor de 2001″, era possível ler. Os memes (imagens partilhadas online, facilmente reconhecíveis e que podem ser adaptadas e editadas para diferentes situações) tornaram-se uma das grandes dúvidas no amplo contexto da reforma dos direitos de autor, dada a sua popularidade. 

    Sobre a carta aberta aos youtubers, a Associação D3 aponta falhas ao conteúdo: “A Comissão Europeia em Portugal tem o dever de partilhar informação rigorosa. Dizer que os memes estão protegidos por uma excepção que Portugal não tem e que não é obrigado a ter é uma falta de rigor incompreensível numa instituição como a Comissão”, com a D3 a indicar ainda que “nada no texto responde às críticas exatas que são feitas”.

    Relativamente à exceção dos memes, referida na carta aberta de Sofia Colares Alves, a Associação D3 refere que “a excepção da Diretiva de Direitos de Autor de 2001 não é obrigatória e Portugal decidiu não ter exceção para a paródia. Temos uma exceção para o uso de excertos para fins de opinião e crítica, mas um meme não tem de ter crítica ou ser acompanhado por uma opinião, pode ser apenas paródia e neste caso não está salvaguardado, mesmo nos dias de hoje. E essa excepção também não está a ser alterada pela reforma”.

    “No que se refere ao artigo 13, as excepções não salvaguardam os cidadãos. Como já explicámos, os filtros automáticos são cegos às excepções. Por outro lado, cada um dos 28 países da União Europeia tem excepções diferentes”, indicam, apontando ainda outra dificuldade.

    Para garantir que estes tais filtros automáticos correspondiam à legislação de cada Estado-Membro, seria “preciso convencer as plataformas a fazer filtros para cada uma das dezenas de exceções de cada país”.

    Um exercício de simulação
    Se fizermos um exercício de simulação,o que é que vai, na realidade, acontecer a plataformas como o Instagram, YouTube ou Facebook tendo em conta o artigo 13.º, na UE, perguntou a Insider à Associação D3.  Na visão dos seus responsáveis, no YouTube, a resposta passou pela adaptação do sistema de ContentID, uma das estratégias da plataforma da Google para assegurar pagamentos de direitos de autor, num cenário que pode vir a reforçar a hegemonia da gigante da Internet.

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    “Isto garantirá que nenhuma outra empresa, principalmente startups e pequenas e médias empresas europeias poderão competir no mesmo mercado, pois ninguém tem meios para ultrapassar tal barreira à concorrência. Abre-se ainda a possibilidade de a Google disponibilizar o seu sistema de contentID como serviço, vendendo a outras plataformas a possibilidade de usar esse serviço a troco de uma qualquer remuneração, em mais um regime monopolista de facto”.

    Para os utilizadores, além da questão dos filtros “cegos”, a Associação aponta ainda para o agravamento de situações em que “utilizações perfeitamente razoáveis e legítimas de conteúdos irão ser barradas por filtros automatizados que são cegos às exceções e não sabem distinguir utilizações legais de utilizações ilegais”.

    E esta não será ainda a única questão desta proposta de diretiva neste assunto, caso os filtros entrem em ação. “Enquanto agora conseguimos notar quando um vídeo foi apagado, de futuro nem sequer iremos conseguir ter a perceção dos conteúdos recusados pelas plataformas, pois eles não chegam sequer a ser publicados”, alerta a D3.

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    O que é que ainda pode mudar?
    Depois de vários pontos terem sido discutidos, estas ambições de reforma dos direitos de autor materializam-se na proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos direitos de autor no mercado único digital, uma proposta que foi aprovada pelo em setembro deste ano. Esta aprovação foi mais etapa do caminho da proposta de reforma, mas ainda é necessário um documento final, que terá de passar por uma votação no plenário do Parlamento Europeu, conforme explica Eduardo Santos.

    “Neste momento, a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu, e o Conselho da União Europeia estão em negociações, à porta fechada. O Tribunal de Justiça da União Europeia já fez saber que estas reuniões devem ser escrutinadas pelos cidadãos, mas a verdade é que oficialmente não são publicadas informações sobre o que está a decorrer”, aponta o presidente da D3.

    Coloca-se então a questão: o que é que os cidadãos europeus podem fazer? O primeiro passo resume-se numa palavra: informação. Por vezes, a linguagem que compõe este tipo de documentos não se afigura acessível a todos, mas há sempre espaço para “fazer perguntas sobre o que estiver menos claro”, aconselha a Associação D3, que refere também o site da ANSOL (Associação Nacional para o Software Livre) como mais uma alternativa para quem quiser saber mais sobre o tema.

    “Os cidadãos devem contactar o governo e o Ministério da Cultura, ministério responsável por esta matéria, devem falar disto nas redes sociais e devem começar a escrever aos nossos eurodeputados, que ainda poderão travar a reforma na tal votação final”, elucida Eduardo Santos. Através do Twitter, a Associação D3 tem partilhado informação sobre a proposta de diretiva e respondido regularmente a quem coloca dúvidas sobre a temática.

    Espaço aberto ao debate
    Na próxima terça-feira, dia 4 de dezembro, a partir das 9h30, a Biblioteca Nacional de Portugal receberá o evento intitulado “A Reforma do Direito de Autor e o interesse Público”, organizado pela Wikimedia Portugal, D3 e ANSOL.

    Ao longo dos meses, a Associação D3 já organizou protestos sobre o assunto – e não fecha a porta a mais manifestações no futuro.”É provável que aconteçam, principalmente mais perto da data das eleições. Pretendemos tornar este um tema fulcral nas eleições europeias de maio de 2019, principalmente junto do eleitor mais jovem”.