Bacalhau com sabor a maçã não é normal mas é possível. Em Portugal já há restaurantes que querem contratar cientistas para acelerar a inovação. Três chefs estrelados contam como a tecnologia está a revolucionar o mundo da alta cozinha.
Foi com dois leitões na bagagem que Ricardo Costa aterrou há um mês na Coreia do Sul. O chef do The Yeatman foi ao outro lado do mundo mostrar à galáxia Michelin como se faz a iguaria à moda da Bairrada. À moda não: “Igualzinho ao da Bairrada.” O truque custa cerca de dez mil euros e chama-se Rational. É um forno topo de gama e a prova de que a alta cozinha fez fusão com a tecnologia.
“Soube que eles tinham em Seul o mesmo forno que temos no restaurante, por isso é que levei os leitões. Já recebemos no Yeatman um dos melhores assadores da Bairrada, que quase chorou quando provou o nosso leitão. Com este forno consigo que todos saiam exatamente iguais, que é o sonho de qualquer chef”, conta Ricardo Costa à Insider.
Com duas estrelas Michelin no bolso da jaleca, Ricardo Costa conhece o sabor da perfeição. E sabe que tem de servi-lo todos os dias. Sem “os brinquedos” que tem nas duas cozinhas do multipremiado restaurante de Vila Nova de Gaia, admite que não seria possível.
“O bom da tecnologia é que nos permite criar standards, ou seja, fazer a mesma receita todos os dias sem falhas. Nestes restaurantes a responsabilidade é muito grande e tem de haver consistência, tanto na confeção como no empratamento.”
O que traz outra vantagem: liberdade. “Por causa dos avanços tecnológicos sei que posso ausentar-me e não estar preocupado com o resultado porque será sempre igual.”
O menu Experiência Gastronómica do The Yeatman promete um “peixe cozinhado a 55 graus”, algo que por mais experiência que um chef tenha é “incapaz” de perceber sem uma sonda de precisão, tão imprescindível como sal e pimenta numa cozinha de topo. “No passado os franceses pegavam numa agulha, espetavam no peixe ou na carne e depois levavam ao lábio para sentir a temperatura. Hoje a sonda permite-nos ver se falta meio grau para o peixe estar no ponto.”
Entre as geringonças que Ricardo Costa não dispensa na cozinha está o Hold-o-Mat, uma espécie de forno que é na verdade uma estufa sem humidade, explica o chef, mais usada no norte da Europa do que por cá. “Permite descansar a carne e fazer cozeduras lentas a temperaturas muito baixas.” O recorde na cozinha do Yeatman pertence a um jarret de porco que, após muita tentativa e erro, se percebeu que ficava perfeito se cozesse durante 24 horas a 72 graus.
“É um trabalho de paciência”, sublinha Ricardo Costa, enquanto observa um dos membros da sua equipa a recortar à mão e ao milímetro esferas de mozzarella que têm de estar na mesa dentro de cinco horas. Um trabalho que até poderia ser feito por uma máquina, admite, mas em muitos casos “as máquinas só aceleram os processos, não aumentam a qualidade. Se eu picar uma cebola à mão sei que ela vai libertar mais sucos e aromas. Mas o tempo que ganho com a máquina se calhar vai-me permitir criar outras coisas que serão mais importantes para o prato do que a cebola”. Em que ficamos?
O homem contra a máquina?
Ricardo Costa é perentório: a tecnologia nunca vai substituir completamente o ser humano na cozinha. O melhor exemplo da afirmação do chef aconteceu meia hora antes do encontro com a Insider. “Atrasei-me a vir ter com vocês porque tive de refazer um arroz de marisco que os meus cozinheiros estragaram. Porquê? Não havia tecnologia. É preciso ter as bases, saber o antigo.”
Quando relembra as cozinhas onde começou a trabalhar há quase 20 anos, Ricardo Costa admite que “havia mais alma, mais adrenalina, tudo era de improviso. Se calhar podia falhar mais”. Ao mesmo tempo assume-se fã do que se faz de novo e reconhece que “os resultados são hoje muito superiores”. Quem procura um restaurante com estrelas não vem só pela comida, mas pela experiência.
O conceito da cozinha-espetáculo é antigo mas ninguém o terá popularizado como os irmãos Adriá. Durante anos, o El Bulli atraiu à Catalunha os adeptos da gastronomia molecular. Sete anos depois do fecho daquele que foi eleito cinco vezes o melhor restaurante do mundo, o que resta da herança do El Bulli?
“Não foi uma moda, foi uma escola”, afirma Alexandre Silva, chef do restaurante lisboeta Loco, que ganhou a primeira estrela Michelin sete meses após a abertura de portas. “Algumas coisas ficaram, outras não. A cozinha do El Bulli foi muito criticada mas trouxe uma maneira de pensar muito diferente. Mais do que as esferificações ou o uso do nitrogénio, que ficaram conhecidos, foi a parte criativa que ficou para a história.”
No passado dia 4 [de agosto], Albert Adriá foi o chef convidado na cozinha do Loco. Na ementa havia, por exemplo, um snack feito com rabos e escamas de carapau. Um prato que encaixa no lema não oficial do restaurante: “Fazer que as pessoas comam com um sorriso na cara algo que em princípio nunca comeriam.” Foi esse mote que levou Alexandre Silva a abrir na porta ao lado do Loco um laboratório de onde não sai comida, mas experiências. Algumas mirabolantes.
“Este espaço sempre esteve pensado. Não conseguimos abri-lo logo porque o investimento era muito grande. Mas um restaurante como o Loco precisa de ter alguém fora da equipa a pensar e a criar todos os dias.”
Graças ao I+D, Alexandre Silva tem conseguido inventar pelo menos um prato novo por semana.
O próximo passo passa por contratar um cientista. A primeira parceria já está a ser tratada com um investigador da Fundação Champalimaud. “É muito mais fácil com ajuda científica chegar mais depressa ao resultado que queremos. Às vezes andamos dias às voltas sem perceber onde está o erro.” No primeiro encontro, ambos perceberam que os processos criativos de um laboratório “são exatamente iguais aos de uma cozinha”.
E as máquinas também. Na cozinha do I+D não há fogão mas há uma Rotaval, uma máquina que nem sempre teve lugar entre os tachos. “Existe em laboratórios de análises, serve para extrair a humidade. É usada, por exemplo, para medir a poluição da água. De um lado fica a parte sólida e do outro o aroma.” Na cozinha do Loco, a Rotaval já contribuiu para criar um gelado que cheirava a couve mas sabia a maçã. Ou uma sobremesa com sumo de nabo que, tanta foi a água retirada, que acabou por ficar doce.
Entre os tesouros 4.0 de Alexandre Silva está ainda a Gastrovac, que, como o nome indica, trabalha a vácuo. “Aqui conseguimos fazer, por exemplo, um bacalhau com sabor a maçã ou cogumelos com sabor a tomate.”
Para o chef do Loco, o futuro da tecnologia na cozinha passa por descobrir a fórmula para o desperdício zero. No restaurante lisboeta, só o vinho não é feito na casa. “Mas temos um espumante feito com cascas de fruta. Criamos coisas que mais ninguém cria porque, como deitam tanta coisa fora, nem sequer pensam sobre isso.”
“Nem quero saber quanto custa”
“Se mostrássemos a um cozinheiro do antigamente aquilo que conseguimos fazer hoje em dia ele cairia para o lado.” A visão é do italiano Daniele Pirillo, chef residente do restaurante Gusto by Heinz Beck, no Hotel Conrad, em Almancil, premiado – “com surpresa” – com uma estrela em 2017.
Tal como nas cozinhas Michelin de Lisboa e do Porto, também no Algarve o protagonista é o imenso fogão que faz as honras no centro da sala. Uma peça topo de gama que custa cerca de 80 mil euros. Investimento em tecnologia é o que não falta na cozinha do Gusto. “Aquele forno custa tanto como um carro. Usamos para fazer pão porque tem uma precisão de cozedura fora do normal”, explica o chef italiano. “Do resto nem quero saber preços, talvez quando tiver o meu próprio restaurante”, atira Daniele Pirillo.
“O resto” inclui um liofilizador, que desidrata alimentos a frio (-50 graus) e demora seis dias a concluir o processo. Um puré de bróculos, por exemplo, é congelado e colocado na máquina. Seis dias depois, evaporada toda a água, pode ser transformado em pó ou cortado em pedaços. A vantagem? “Intensifica muito o sabor.”
Daniele Pirillo aprendeu a cozinhar à antiga, na terra natal, no norte de Itália. Os truques das máquinas trouxe do restaurante La Pergola, em Roma, que a nível de inovação, admite, está “uns passos à frente” da cozinha portuguesa.
O chef garante que no Gusto tem toda a tecnologia de que precisa para manter a estrela, até porque para os inspetores da Michelin o que conta é o que aparece no prato.
Quanto ao futuro, acredita que passa cada vez mais pela criatividade sem limites e deixa um desejo: “Espero que a tecnologia nos liberte, que nos permita trabalhar menos horas. Hoje passamos 14 horas na cozinha. Que venham os robôs para nos ajudar.”
*Este artigo foi originalmente publicado na edição de agosto de 2018 da revista Insider com o título ‘Os Michelin da culinária 4.0’. Veja outros destaques da revista aqui.