Tecnológicas lideram era do trabalho flexível “ajustado ao foco de cada um” em Portugal

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    Empresas em Portugal já atraem e retêm talento com licenças sabáticas pagas, trabalho remoto e horários à vontade do ‘freguês’. Tecnologia permite soluções criativas, mas (até a nível mental) não é para todos. 

    O trabalho feito a partir de casa não é uma inovação dos tempos modernos nem da era digital em que vivemos, mas é hoje “uma necessidade com contornos cada vez mais criativos para várias empresas na hora de procurar captar e reter talento”.

    Maria José Chambel, professora de Psicologia da Universidade de Lisboa e autora e investigadora na relação entre trabalho e família, explica-nos que “desde os anos 1980 que se alimentou uma cultura de excesso de trabalho que não era saudável”. “Quantas mais horas se trabalhasse nos escritórios, melhor, a ponto de ser normal estar lá mais de 12 e hoje isso já começa a ser malvisto, felizmente”, diz. “Foram as empresas tecnológicas, já no novo milénio, que iniciaram esta vaga de flexibilidade agora mais global.”

    O facto de dominarem as novas ferramentas digitais – videochamadas, etc. – ajudou as tecnológicas a aderir mais rapidamente ao trabalho remoto, isso e o facto de terem “uma cultura avessa à rigidez”, diz a especialista, que admite que “ainda há muitos gestores em Portugal de uma geração mais tradicional e avessa à mudança”. Falámos com algumas das empresas que costumam figurar no topo dos rankings das Melhores para se Trabalhar e descobrimos soluções criativas, com o objetivo de ter trabalhadores satisfeitos, motivados e, em certa medida, produtivos.

    Farfetch
    Escritório da Farfetch em Leça do Balio, que funciona como centro de inovação global.
    (Rui Oliveira / Global Imagens)

    Farfetch, a primeira startup portuguesa com estatuto de unicórnio (valor acima dos mil milhões de dólares) tem mais de dois mil funcionários na zona do norte e novas regalias para atrair e reter engenheiros que ajudem a Amazon da moda de luxo a inovar. Ana Sousa, responsável pelos recursos humanos, explica-nos que além do trabalho remoto, de casa, os funcionários fazem os seus horários. Agora estão a implementar um programa-piloto para quem queira trabalhar a partir de outro país até um ano. Já o novo programa Boomerang permite a todos os colaboradores com cinco anos de empresa uma licença sabática paga de oito semanas (renovada a cada cinco anos na empresa). Além disso, há 25 dias de férias, mais três dias extra para tarefas pessoais – algo que vimos noutras empresas jovens como esta. O feedback tem sido “ótimo” e Ana Sousa admite que “a alta performance só é possível quando as pessoas estão em equilíbrio pessoal e profissional”.

    Unbabel, uma startup portuguesa que usa inteligência artificial em soluções de tradução, tem o trabalho remoto na sua génese. Usam a plataforma Slack para comunicar as ausências no escritório e não há horários fixos, para “que todos ajustem as tarefas e os projetos às suas horas de maior produtividade”, diz-nos Teresa Silva, responsável pelos recursos humanos.

    A crescente internacionalização da empresa que já tem escritórios de Singapura a São Francisco e tem aumentado o número de colaboradores “a trabalhar remotamente full-time”, a maioria nas áreas de vendas e de negócio. O recrutamento para trabalho remoto continua, inclusive em Portugal. Têm um feedback trimestral dos colaboradores “e a resposta tem sido muito positiva”. Neste momento, estão a avaliar se há ou não um melhor desempenho com o trabalho remoto.

    Situação igual registamos na Blip, outra startup tecnológica que faz software para aplicações de desporto. Nasceu no Porto, onde ainda está, em 2009 e contagiou o grupo Paddy Power Betfair – a que pertence há oito anos -, com soluções flexíveis criativas. Todos os 320 colaboradores podem escolher ou um dois dias para trabalhar de casa e há duas pessoas que já trabalham sempre de forma remota, algo que vão expandir por ter corrido tão bem. Os colaboradores podem trabalhar em part-time e tirar licenças sabáticas de meses.

    23,9% dos portugueses que trabalham em escritórios preferiam poder trabalhar de casa e só 14% têm oportunidade de o fazer (55% deles são mulheres)

    De acordo com dados do Eurofund de 2017, apenas 2% da população nacional encontrava-se neste regime remoto de forma regular. Um relatório recente da Savills sobre trabalhadores portugueses em escritórios indica que 23,9% preferiam poder trabalhar de casa e só 14% têm oportunidade de o fazer (55% deles são mulheres). Daí que empresas mais antigas como a Xerox Portugal também apostem cada vez mais na flexibilidade laboral, algo que aplicam de forma concreta desde de 2015, mas que tiveram de promover de outra forma porque havia quem tivesse receio de aderir.

    Maria Alexandra Pires, diretora de recursos humanos, explica-nos que começaram a disponibilizar a 100% dos colaboradores telemóvel, portátil e VPN, para todos terem acesso às ferramentas da empresa a partir de casa, e já não têm horários fixos. “Os managers sugerem mesmo que as pessoas trabalhem alguns dias de casa porque em certas circunstâncias são mais produtivas e menos interrompidas”, admite.

    Neste momento, têm três colaboradores a trabalhar permanentemente de casa, porque o pediram. Há soluções mais criativas a decorrer, com um pai e duas mães, já depois de gozarem a licença parental, a trabalhar em part-time – ou três dias por semana ou 80% do horário normal. A “responsabilização e a comunicação constante” têm permitido evitar abusos.

    Worten também está a expandir a sua política de flexibilidade desde julho, com cinco medidas – 44% dos trabalhadores já aderiram. Os mais populares são o trabalho remoto, a escolha de horário pelo colaborador e os dias extra de dispensa de trabalho por ano não remunerados. A consultora Edge, há 13 anos em Portugal, desde o ano passado que está a reduzir o número de reuniões para promover a flexibilidade e a autonomia de cada um, e a política de flexibilidade tem trazido uma maior taxa de natalidade nos colaboradores – duplicou no ano passado.

    Já a SAS Portugal – especialista em análise de dados – também pratica o horário de trabalho flexível para todos e proporciona o regime de teletrabalho, enquanto a Natixis permite que os colaboradores trabalhem de casa um máximo de seis dias por mês, com 60% a já usufruírem da prática.

    JLL  faz gestão imobiliária -, por outro lado, além de ter desde o ano passado o trabalho remoto um dia por semana – 40% dos colaboradores já aderiram -, dá a tarde de sexta-feira a partir das 14.30, como o faz a BMW Portugal, entre outros. Neste ano permitem aos colaboradores entrar mais cedo, tirarem só uns minutos para almoçar e, assim, saírem bem mais cedo.

    Já a Siemens Portugal tem 500 pessoas a usar o trabalho remoto, enquanto a Liberty Seguros admite-nos que com o horário flexível e o trabalho de casa (até dois dias por semana) tem reduzido a taxa de absentismo. A Mundipharma, por seu lado, indica ser desde 2015, ano em que foi criada, uma empresa assente nessa flexibilidade no trabalho, com horário flexível, redução de horário de trabalho em caso de necessidade dos trabalhadores ou trabalho remoto, “para manter os colaboradores motivados”.

    A investigadora Maria José Chambel, explica, no entanto, o trabalho remoto “não é para todos”, porque cada um “tem atitudes face ao trabalho diferentes”, ao ponto de existirem inclusive jovens que preferem ir diariamente ao escritório “para definir bem, até a nível mental, o que é trabalho e o que é casa” e existem pessoas que se sentem isoladas.

    “O importante é existir, cada vez mais, essa hipótese para quem se adeque a esse estilo”. Daí que a Chambel indique que há cada vez mais empresas a apostar na formação dos colaboradores para se sentirem mais à vontade com o trabalho remoto. “Existem mesmo situações onde o espaço de trabalho na casa do colaborador, das cadeiras às secretárias de qualidade, é fornecido pela empresa e só serve para trabalhar”, adianta.

    Os dados são a nova bola de cristal para o recrutamento

    Trabalhar quatro dias por semana? Já se pratica em Portugal, mas (ainda) só para alguns

    Há quem já só trabalhe quatro dias por semana, mas a generalização desta prática “é difícil na atual cultura em Portugal”

    Tem sido uma das tendências a nível laboral mais faladas nos últimos tempos, mas ainda não há empresas de grande dimensão a aplicar a semana de quatro dias de trabalho à generalidade dos colaboradores.

    No ano passado, a Microsoft do Japão testou durante um mês o horário laboral de quatro dias semanais. Registou um aumento de produtividade de 40%, uma redução em 23% na conta da eletricidade e a indicação que 90% dos colaboradores sentiu um impacto positivo com a medida, que até ajuda a tirar carros das ruas e a melhorar o trânsito. No entanto, a empresa ainda não generalizou o teste.

    Além de outras experiências feitas em empresas, há governantes adeptos da ideia, como é o caso da primeira-ministra finlandesa – no entanto, não o incluiu no seu programa de governo.

    Em Portugal (ver texto ao lado), há várias empresas a aumentar as soluções de flexibilidade laboral e a permitir aos funcionários um regime apelidado de part-time (permanente ou por um período de tempo), que permite trabalhar quatro dias por semana (ou até menos). Há colaboradores a beneficiar disso mesmo em empresas como Xerox Portugal, Worten ou a Blip e a JLL em Portugal dá a tarde de sexta-feira a todos os colaboradores.

    Catarina Carvalho, professora em Direito laboral da Universidade Católica do Porto, admite que a legislação nacional encara estas hipóteses como exceção e não como regra. No entanto, a lei já permite a semana de quatro dias de trabalho mesmo que “não seja aconselhado a nível de saúde trabalhar-se de forma frequente até 12 horas por dia”. O regime chamado de horário concentrado, por exemplo, permitiu à pequena startup de recrutamento Humaniaks colocar os seus quatro funcionários a trabalhar até 12 horas quatro dias por semana para poder ter o quinto dia de folga.

    Apesar destes exemplos, generalizar a ideia a empresas maiores é algo visto como difícil. Maria Alexandra Pires, da Xerox Portugal, admite que podia haver vantagens na produtividade, mas que seria necessário “mudar muita coisa em Portugal, inclusive a nível cultural”.

    Sara Sousa, da empresa de software Blip (sediada no Porto), concorda e adianta que há dificuldades legais no país que não ajudam. A SAS Portugal admite que ainda não considerou a hipótese, mas se Portugal quisesse estabelecer a redução da semana laboral estariam adaptados para “pô-la em prática de forma imediata”.

    A professora Catarina Carvalho admite que em Portugal a legislação laboral portuguesa (algo que até é um requisito europeu) obriga ao registo dos horário do trabalho, o que nem sempre facilita a flexibilidade que só é mais considerado no país por questões de parentalidade (para pais com crianças com menos de 12 anos). Nestes casos a legislação até permite passar os horários para três dias de trabalho, sempre com o máximo possível de 12 horas de trabalho diárias.

    No entanto, “se o país quisesse favorecer de forma generalizada a semana de 4 dias de trabalho – sendo que o ideal seria não ultrapassar as 8 ou 9 horas por dia de trabalho -, teria de mudar a legislação para mostrar às empresas que essa era a nova prioridade”. Catarina Carvalho diz mesmo que “não se vê vontade em seguir esse caminho nos representantes na concertação social, especialmente por parte das empresas”.

    Além destes regimes há outras empresas com situações peculiares relacionadas com o tempo de trabalho ou a localização em que ele é feito. A BinaryEdge, que tem soluções de cibersegurança e foi vendida por dezenas de milhões de euros recentemente a uma tecnológica dos EUA, por exemplo, é feita por portugueses a trabalhar de suas casas em full time desde Zurique, na Suíça, Londres, no Reino Unido e Faro e Lisboa, em Portugal. Existem várias outras startups nesta mesma situação e, como vimos, o trabalho remoto mesmo de países diferentes começa a ser uma solução cada vez mais frequente especialmente nas empresas tecnológicas.

    Situação semelhante aconteceu com Ricardo Macieira. O atual responsável da Revolut Portugal, montou e geriu o negócio da Airbnb em Portugal durante anos totalmente a partir de sua casa, com reuniões mensais com os escritórios da empresa em Barcelona. “Gostava de trabalhar de casa, tinha várias vantagens, especialmente poupar tempo nas viagens”, admitia-nos numa entrevista no final do ano passado, “até porque nesta era digital podemos trabalhar de qualquer lado, desde que tenhamos internet e um computador”.

    O diretor de engenharia da Web Summit, João Soares, é português e gere a sua equipa a partir de sua casa, por exemplo. “O importante para nós é a qualidade do trabalho feito, não é nem o horário nem o local onde se trabalha”, dizia-nos no verão Paddy Cosgrave.

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