O novo documentário da Netflix deixa a nu a exploração de dados para efeitos políticos, acompanhando alguns dos intervenientes no escândalo Cambridge Analytica, em 2018. E a dúvida fica no ar: tem a certeza de que sabe mesmo a origem daquilo que vê online?
The Great Hack, na versão portuguesa Nada é Privado: o escândalo da Cambridge Analytica, é o documentário que tenta unir os pontos do caso que, no ano passado, agitou a confiança nas plataformas sociais. Ao longo das quase duas horas vai ouvir recorrentemente a expressão “os dados já valem mais do que o petróleo”. Sem sequer pensar nisso, está a deixar pequenas migalhas no mundo digital: a aplicação que instalou, a fotografia que partilhou, o comentário que fez ou o ‘gosto’ que está à distância de um botão. E, sem pensar, está a receber zero por essa informação, que vale muito dinheiro. Como explica David Carroll, professor de comunicação e um dos protagonistas deste documentário, esta simples atitude está a transformá-lo em “mercadoria”.
Em 2018, o mundo acordava para a existência de uma empresa britânica, a Cambridge Analytica. Um ano depois, a dupla de premiados realizadores Karim Amer e Jehane Noujaim volta à carga para mostrar o outro lado do caso, que trouxe a lume aquilo que é possível fazer com os dados dos utilizadores – longe de servir apenas para apresentar-lhe anúncios personalizados.
Amer e Noujaim não são propriamente estreantes na forma de mostrar os complexos efeitos sísmicos das plataformas digitais. São os responsáveis por documentários como The Square, sobre a revolução árabe, ou Control Room, focado no efeito dos media na cobertura da Guerra do Iraque. Neste novo documentário, acompanham vários protagonistas com ligações ao caso Cambridge Analytica, de diferentes lados da barricada, para mostrar como é que a informação e os dados precisam de passar a ser vistos como uma arma política. Pelas vozes de David Carroll, um norte-americano que só quer ter acesso aos seus dados, Carole Cadwalladr, a jornalista que denunciou o caso, e Brittany Kaiser e Julian Wheatland, diretora de negócio e diretor operacional da Cambridge Analytica, fazem o rescaldo do escândalo, nos meses quentes das audiências e esclarecimentos a órgãos de poder.
Leia também | A voz que denunciou Cambridge Analytica exige mais regulamentação na tecnologia
Enquanto empresa, a Cambridge Analytica nunca fez grande segredo sobre a sua principal atividade: analisar conjuntos de dados e perceber como era possível tirar partido da informação. O maior exemplo do trabalho da Cambridge Analytica? O desfecho de momentos eleitorais como as eleições norte-americanas de 2016 ou o referendo feito no Reino Unido para a saída da União Europeia (Brexit) – embora a empresa tenha tentado apagar a ligação aos conservadores britânicos do seu historial de trabalho. Antes disso, Alexander Nix, o criador da empresa, já tinha no currículo a influência em vários momentos eleitorais em África, como na Nigéria ou em Trinidad e Tobago.
Em 2016, a Cambridge Analytica tirou dos dados recolhidos através de um inofensivo teste de personalidade no Facebook cerca de cinco mil pontos de dados sobre os eleitores norte-americanos. Em que acreditam, que visões têm do mundo e muito mais. A partir desses pontos, era possível tirar conclusões sobre em quem estariam dispostos a votar. Entre estes dados – estima-se que a amostra ronde os 87 milhões de pessoas – estaria o filão de eleitores mais apetecível: os indecisos.
No contexto da Cambridge Analytica, esse grupo de eleitores recebia outro nome – os persuadíveis. Era nesse contexto que começava o trabalho da Cambridge Analytica, a perceber como era possível tirar partido do efeito de filtro, ao apresentar anúncios e imagens que pudessem levar o eleitor a pender para determinado lado. Como já é conhecido, a empresa queria arrancar mais eleitores para a causa republicana, nos Estados Unidos. Antes disso, o Brexit terá funcionado como uma “incubadora” para olear a máquina.
“Como é que o sonho do mundo conectado nos fragmentou?”
A pergunta é feita num dos momentos iniciais do documentário, por David Carroll, um professor que, assim que teve conhecimento sobre a criação de perfis e dados recolhidos pela Cambridge Analytica, começou uma batalha para exigir à empresa que revelasse que dados tinha sobre ele.
“Estávamos tão apaixonados pela conectividade que ninguém se deu ao trabalho de ler os termos de serviço”, lamenta Carroll. “Como é que o sonho do mundo conectado nos fragmentou?”, questiona, recorrendo a exemplos como a fragmentação política vivida nos Estados Unidos.
Brittany Kaiser, uma das caras que ficou associada à Cambridge Analytica, reconhece que ajudou a criar este leviatã. Ao longo do documentário, aparenta oscilar entre uma leve ponta de orgulho pelo poder e o estado de arrependimento. “Um dos meus amigos perguntou-me se era este o legado que queria deixar na História”, recorda, num dos momentos captados pela dupla de realizadores.
Ainda no ano passado, meses depois do ponto de ebulição do escândalo, era entrevistada pelo Dinheiro Vivo, no evento Anarcha Portugal, já num papel diferente: ativista de dados. Na altura, afirmava que o direito à posse dos dados deveria ser visto como “um direito básico”. “Se as pessoas estão a criar valor para uma empresa, então merecem ser compensadas por isso. Não lhes é oferecido, elas têm esse direito”. Explicava ainda que retirava como lição do caso Cambridge Analytica a clareza de que “é possível usar dados pessoais para fazer o bem, mas que também é muito fácil abusar deles”.
Leia também | Zuckerberg quer debates para discutir a tecnologia na sociedade
A jornalista Carole Cadwalladr vai mais além no poder de influência dos dados. Se o diretor de operações da Cambridge Analytica afirma que todo o caso não é “apenas sobre uma empresa”, seja ela o Facebook, Google ou o WhatsApp, Cadwalladr resume a questão a uma palavra: soberania. “Não é uma questão partidária, é uma questão de soberania nacional”, alerta.
Passou um ano desde o caso que abalou o “namoro” entre o consumidor e as grandes tecnológicas e deu nova luz ao poder dos dados trabalhados para influenciar eleições – tanto que já foi necessário tomar medidas e implementar soluções para proteger momentos eleitorais. O caso mais recente da influência tecnológica é o exemplo nas eleições brasileiras, onde o WhatsApp terá desempenhado um papel de relevo na vitória de Jair Bolsonaro. A batalha contra a desinformação também não dá mostras de abrandar. É neste contexto que é feita uma das principais perguntas, pela voz da jornalista britânica, que quase ganhou um prémio Pulitzer pela denúncia do caso: podemos mesmo confiar na origem da mensagem no outro lado do ecrã ou estamos a ser só manipulados através dos nossos dados?
O documentário The Great Hack é disponibilizado na plataforma da Netflix esta quarta-feira, dia 24 de julho.
FaceApp. Que dados está disposto a dar para se ver mais velho?