Nanotecnologia. Os portugueses que estão a revolucionar aquilo que comemos e vestimos

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Foto: Ben White / Unsplash

O que têm em comum o vestuário, a alimentação ou a saúde? São áreas nas quais a ciência portuguesa está a fazer grandes conquistas a partir de nanopartículas. É a chamada revolução que nem sequer se vê.

*Por Cátia Rocha e Rui da Rocha Ferreira

Todos conhecem a cortiça – casca de sobreiro, produto muito ligado à cultura portuguesa e cujo expoente máximo é, provavelmente, a rolha. E de super-cortiça, já ouviu falar?

Imagine a cortiça de sempre, mas que tem na sua base novos elementos que lhe dão superpoderes. O resultado é um material que nos próximos anos, muito também graças ao seu lado sustentável, vai ganhar relevo num grande número de indústrias.

“O produto tem a capacidade de aliar as vantagens naturais da cortiça, como o seu isolamento, o toque, a leveza, juntamente com outras capacidades ainda mais fortes, reforçadas com a nanotecnologia, que é ter por exemplo mais capacidade para resistir ao fogo, mais capacidade de resistir à luz sem alterar as cores dos próprios produtos e da própria cortiça, mais capacidade de ter inclusivamente integração de iluminação no próprio material”, explicou-nos Albertino Oliveira, diretor comercial e de marketing da Sedacor.

Dentro da empresa o projeto é conhecido como Fun2Cork, sobretudo pela variedade de elementos nos quais pode vir a ser aplicada. Um exemplo prático: no futuro poderá usar papel de cortiça para revestir as paredes lá de casa. Além do toque de design, vai ficar a ganhar em termos de isolamento térmico, de isolamento acústico e também vai poder dispensar candeeiros, pois é o próprio revestimento quem garante a iluminação da divisão.

“Com a nanotecnologia conseguimos aplicar conhecimento e funcionalidade, conseguimos funcionalizar a cortiça, de forma a ela conseguir patamares mais elevados. (…) A nossa intenção é ir mais à frente e provar que a cortiça consegue responder a necessidades que, à partida, seriam impensáveis”.

O projeto de investigação começou em 2016 e terminou no primeiro semestre de 2018, envolvendo a participação de dez elementos da Sedacor. Pelo caminho ganhou o galardão de melhor projeto nos prémios NanoTech, realizados pela primeira vez em Portugal no ano passado.

“Estamos a aplicar o conhecimento desenvolvido em projetos industriais e outros pré-industriais por forma a dar resposta aos pedidos do mercado. Neste momento estamos a verificar as aplicações possíveis e a validá-las”.

E se nos próximos anos começar a ver mais pessoas com roupa feita à base de cortiça, não estranhe. “As peles animais são usadas nomeadamente para a indústria do calçado, mobiliário, estofaria e dos transportes, mas podem ter um produto sucedâneo – que é o caso da pele de cortiça, que pode responder a todos os requisitos necessários da pele animal e é um produto totalmente sustentável”.

Moda sustentável

O que há de especial num vestido que seja produzido com materiais da Tenowa? À primeira vista nada, é uma peça de vestuário como tantas outras. Mas se tiver em conta a forma como são produzidas, então aí o caso muda de figura.

Esta marca portuguesa, que pertence à empresa famalicense Riopele, distingue-se pelos seus tecidos sustentáveis – e que até já teve o criador Nuno Baltazar a usar este têxtil de nova geração. Numa altura em que os problemas ambientais são das questões que exigem uma resposta mais urgente e a indústria do têxtil é uma das que mais polui a nível global, o projeto R4Textiles, do qual nasceu a Tenowa, quer criar roupas mais amigas do ambiente.

“É uma área mais delicada nesta fase, a nível de economia circular, é um projeto no qual colaborámos com a Riopele, em que desenvolvemos uma nova geração de produtos têxteis com base em desperdícios. Nós estamos a usar desperdícios da indústria agroalimentar para introdução no filamento, na própria estrutura dos têxteis”, explicou João Gomes, diretor de operações do Centro de Nanotecnologia e Materiais Técnicos, Funcionais e Inteligentes (CENTI), um dos parceiros de investigação deste projeto.

Na imagem João Gomes, diretor de operações do CENTI. Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens

Os desperdícios, como gordura animal, são usadosem banhos de acabamento. As novas fibras daí resultantes permitem reduzir a quantidade de materiais virgens usados na produção de têxtil, assim como a quantidade de água e energia. Por outro lado, conferem ao tecido características reforçadas, como antiodor, antimicrobiano e antiestático.

Apesar de não parecer altamente avançado, sobretudo no que à nanotecnologia diz respeito, o segmento do vestuário é um dos principais ‘clientes’ do grupo de investigação CENTI, pois além da sustentabilidade, há um grande potencial no uso de nanopartículas para dar novas características aos têxteis.

Outro projeto no qual o CENTI está a trabalhar envolve usar enzimas para colorir têxteis através de um processo biológico, um processo que tradicionalmente “é altamente dispendioso de água e altamente nocivo para o ambiente”. “Estamos a introduzir cada vez mais processos biológicos graças à nanoestruturação de alguns materiais que estamos a produzir”.

“A nanotecnologia não é mais do que uma tecnologia invisível. É algo invisível que nos ajuda também a não alterar as propriedades visuais do material, mas tem uma funcionalidade extra. Pode ser uma condução elétrica, pode ser um isolamento térmico avançado, um efeito autolimpante, um antinódoas sobre a ação da luz solar nessa natureza”, concluiu João Gomes.

Comida “do bem”? A culpa é de um gel

Com as modificações da vida moderna, também a nossa alimentação se alterou. Problemas cardíacos, obesidade ou diabetes tornaram-se em maleitas já regulares. Comemos cada vez mais alimentos processados, é certo, mas há quem trabalhe para conseguir criar opções mais saudáveis, tirando partido da nanotecnologia. A ideia de Miguel Ângelo Cerqueira, que lidera o projeto que deu os primeiros passos na Universidade do Minho e no INL (Laboratório Internacional Ibérico de Nanotecnologia), passou por desenvolver um gel que permite substituir a gordura em alimentos processados. A investigação, que conta também com a participação da Universidade de Campinas, no Brasil, arrancou no ano letivo de 2013/2014 e, à medida que ficando mais apurada, também recebeu prémios, nomeadamente no Food & Nutrition Awards.

Além da questão nutricional, Miguel destaca ainda “as potencialidades deste gel, que permite outras características, incluindo a nível visual”. Recorrendo a este tipo de gel, que “faz modificações físicas dos óleos vegetais”, há todo um mundo de possibilidades: será possível apostar em texturas diferentes, fazer a fortificação dos alimentos e muito mais. Tudo graças a uma vertente desta tecnologia que nem se vê, como tantas vezes é referida.

Este gel, chamado GeLife, está a ser aplicado a produtos como hambúrgueres, salsichas, gelados e muito mais, desde “que sejam produtos processados, com gorduras saturadas”, aponta o investigador. Para os responsáveis deste projeto, as mudanças mais interessantes estão, por agora, no mundo dos produtos com carne – também ele um dos mais problemáticos.

Na foto, o laboratório internacional ibérico de nanotecnologia, em Braga. Foto: Paulo Jorge Magalhães / Global Imagens

As primeiras ‘provas-cegas’ de sabor já foram feitas, com consumidores a testarem diferentes produtos, onde foi aplicado este GeLife. “Comparando com um hambúrguer tradicional, nota-se a diferença”, reconhece Miguel, mas conseguir um hambúrguer com menos gordura e maior concentração de ómega 3, com um valor nutricional bem mais interessante, parece compensar a diferença.

Tanto que a indústria alimentar, a quem também é exigido que haja maior atenção aos valores nutricionais dos alimentos, já deu mostras de estar interessada neste tipo de progresso alimentar. “O interesse da indústria é muito importante”, explica o investigador do INL, que hoje já conta com uma equipa de sete pessoas a trabalhar nesta investigação.

Uma abordagem diferente à terapia oncológica

As teses de doutoramento e mestrado de Ana Rita Rodrigues, Beatriz Cardoso e Daniela Pereira já deram origem ao projeto NBiON Nanotechnology. As três investigadoras, ligadas ao mundo da ciência, apostam no desenvolvimento de nanossistemas magnéticos multifuncionais, para serem aplicados aos tratamentos oncológicos.

E em que é que isto se traduz? Através destes sistemas de tamanho nano, não visíveis a olho nú, é possível encapsular medicamentos para a quimioterapia que podem ter uma aplicação mais precisa e próxima do tumor, o “inimigo” que se quer combater durante os processos de terapia oncológica.

O facto de serem nanossistemas magnéticos também desempenha um papel importante nesta terapia, que deu os primeiros passos também na Universidade do Minho. “No local, é acionado um campo magnético alternado, que também favorece o aquecimento”, explica Ana Rita Rodrigues, acrescentando que, dada a sensibilidade das células que compõem os tumores, reagem de uma forma diferente ao calor.

“É uma terapia sinérgica, que permite também uma redução de custos dos tratamentos”. Vale a pena recordar que, segundo os dados do Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, os tratamentos para o cancro já representaram um quinto do total da despesa dos hospitais, em 2017. Nesse ano, os gastos com tratamentos oncológicos chegaram aos 284 milhões de euros – um crescimento de 13,7% em comparação com o ano anterior. Tendo em conta este panorama, há quem queira explorar outras formas de tratamento – se forem mais eficazes e menos dispendiosas, ainda melhor.

A ideia das três jovens já passou para o mundo do “empreendedorismo virado para a ciência”, como explica Ana Rita. Em fevereiro de 2018, conquistaram o segundo prémio do concurso de Ideias de Negócios da SpinUM, da TecMinho. Depois disso, seguiu-se a integração em programas de aceleração, como o FUEL, que já deu frutos: a incubação no INL, em Braga.

Com seis anos de investigação na área e, após a conclusão dos ensaios in vitro, o projeto NBiON está agora à procura de financiamento para avançar para testes desta terapia em animais vivos, como ratos. Os custos associados a este tipo de desenvolvimento científico são elevados e transformam-se numa das grandes entraves ao progresso deste projeto. A melhor das hipóteses para ter resultados mais concretos destes testes in vivo? “Cerca de dois anos”, explica a investigadora.