Numa altura em que os EUA continuam a levantar várias suspeitas sobre as intenções da China a nível de espionagem, a Microsoft colaborou com instituições chinesas numa investigação que pode ser usada em vigilância e, dizem os americanos, censura.
Até que ponto podem ou devem investigadores de grandes empresas ocidentais, mais concretamente norte-americanas, colaborar com instituições chinesas? A pergunta era desvalorizada não há muito tempo, com a existência de várias colaborações entre países ocidentais e a China, como é habitual inclusive em trabalhos de investigação. Mas numa altura em que os EUA intensificam a desconfiança em relação à China – num misto de guerra comercial e política – e aconselham o mundo ocidental a não usar redes 5G com produtos chineses, por receios de espionagem, as colaborações ganham novas dimensões.
Neste caso, reporta o Financial Times, a Microsoft trabalhou com uma universidade chinesa dirigida por militares em investigação de inteligência artificial (IA) que poderá ser usada para vigilância e, eventualmente, censura. A revelação fez elevar a ira dos vários membros do senado norte-americano que apoiam políticas agressivas contra a China, argumentando que o facto de não ser uma democracia e ter leis que podem limitar a liberdade ou independência das empresas pode ter efeitos negativos.
Na verdade, foram três os trabalhos publicados entre março e novembro do ano passado, co-escritos por académicos da Microsoft Research Asia, em Pequim, e por investigadores ligados à Universidade Nacional de Tecnologia e Defesa da China, controlada pelo principal órgão militar chinês, a Comissão Militar Central.
Um dos trabalhos de investigação era descrito como um novo método de IA para recriar mapas detalhados que chegam a analisar rostos humanos, que especialistas norte-americanos indicam que podem ter aplicações claras na tal vigilância.
“O governo chinês está a usar estas tecnologias para construir sistemas de vigilância e para deter minorias [em Xinjiang]”, indica ao Financial Times Samm Sacks, investigador do think-tank New America e especialista em políticas de tecnologia da China.
O governo dos EUA está a ponderar se as colaborações de investigação, particularmente em áreas sensíveis como inteligência artificial e realidade aumentada, devem ou não estar sujeitas a controlos de exportação ou colaboração mais rigorosos por parte de entidades oficiais americanas.
Pedro Domingos: a investigação a caminho do algoritmo perfeito
O investigador português Pedro Domingos, um dos maiores especialistas mundiais em IA e professor na Universidade de Washington, diz que a investigação da Microsoft que permite o chamado mapeamento ambiental pode dar ajuda importante a autoridades que tentam monitorizar os cidadãos. Ao Financial Times, o português que já entrevistámos o ano passado, explica: “Vamos supor que eu sou de uma agência de serviços secretos e tenho fotos de pessoas de interesse posso, assim, usar este sistema para me dizer qual o lugar em que eles estão, sem eles perceberem que estão a ser monitorizados.”
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O senador republicano Ted Cruz disse, entretanto, que “as empresas americanas precisam de entender que fazer negócios na China acarreta riscos significativos e profundos”. Além do mais, argumenta: “as empresas americanas também podem ser alvo de espionagem pelo Partido Comunista Chinês e correm o risco de aumentar as atrocidades dos direitos humanos”. No entanto, admite que EUA e China devem manter negociações entre países.
A Microsoft defende a investigação, ao indicar que se trata de um esforço mundial dos seus cientistas, que são muitas vezes académicos e trabalham com parceiros internacionais em assuntos de tecnologia de ponta. “A investigação é guiada pelos nossos princípios e cumpre as leis americanas e locais e é publicada para garantir transparência, para todos beneficiarem do trabalho”, explica a empresa.
Adam Segal, diretor de política do espaço cibernético do Conselho de Relações Exteriores dos EUA, explica que a revelação chega num altura em que as autoridades americanas, incluindo o FBI, puseram as parcerias académicas com a China “sob o microscópio”, por receios que estudantes e cientistas chineses a trabalhar em tecnologias de ponta possam servir o exército chinês.
A semana passada foi o MIT (Massachusetts Institute of Technology) a anunciar que cortou as relações que tinha com o grupo Huawei e começou a rever as colaborações com a China devido a “risco elevado”.
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