A Apple surpreendeu o mercado com uma aparente mudança de estratégia, que não está relacionada com o hardware.
Assim que a Apple deixou cair o pano no Steve Jobs Theater, onde decorreu a sua apresentação anual mais esperada, aconteceram duas coisas curiosas. Uma foi a subida da cotação das suas ações, que encerraram a sessão a valorizar 1,18%, enquanto os títulos da Netflix, Amazon, Walt Disney e Roku deram um tombo; a outra foi uma invasão de ‘memes’ a ridicularizar o design das três câmaras do iPhone 11 Pro, comparado a bicos de fogão, máquinas de barbear, bolas de bowling e até aos aliens do filme infantil “Chicken Little”.
Ambas espelham o impacto duradouro que este evento, sem surpresas esmagadoras, terá no mercado. Embora o design geral do trio de iPhone 11 seja similar aos modelos do ano passado, com melhorias ao nível do processador, bateria e câmaras, a sua visibilidade é notável.
“Não vou avaliar os sensores das câmaras, mas sei que a Apple é realmente muito boa a vender a experiência, mais que ter a melhor tecnologia ou ser a primeira a lançá-la”, disse ao Dinheiro Vivo o analista da Gartner Tuong Nguyen, que acompanhou a apresentação. “Queixem-se o quanto quiserem da Apple, mas têm de admitir que eles são muito bons a venderem a experiência.”
O fascínio ou repulsa pelo iPhone 11 Pro, que tem o sistema de três câmaras, estão também relacionados com o seu preço elevado: 1179 euros na versão de 5,8 polegadas e 1279 euros na versão de 6,5 polegadas, o iPhone 11 Pro Max. O diretor mundial de marketing da Apple, Phil Schiller, disse várias vezes que este é um telefone para profissionais e ao apresentar as novas capas protetoras mencionou como elas permitem pavonear o novo telemóvel.
Mas Nguyen pensa que se trata de mais que estatuto: “quando se fala de um dispositivo que custa 1100 dólares, é para pessoas que podem pagá-lo, para os que que são entusiastas da tecnologia, ou realmente para profissionais.” E a Apple, reiterou, é perita a envolver os consumidores em algo que vai para lá das especificações e vende a ideia de tornar a vida mais fácil e melhor. Um bom exemplo, indicou, foi o vídeo com testemunhos de utilizadores que foram salvos pelo Apple Watch. “Não venderam o monitor de batimentos cardíacos nem o melhor ecrã. Venderam esta experiência”.
A mudança de estratégia
O que este evento mostrou, por outro lado, foi uma inflexão da estratégia da Apple em várias áreas. A marca pareceu querer apresentar-se como acessível, destacando os preços baixos dos seus produtos mais populares. E a fixação de 4,99 dólares tanto para a subscrição de jogos Arcade como para o serviço de streaming TV+ tornou isso muito visível – além de a colocar como rival direta do Netflix, Amazon, Roku. Daí a queda significativa em bolsa das ações destas empresas a seguir ao anúncio, um sinal de que os investidores levam a entrada da Apple no espaço muito a sério.
O foco da marca nos preços baixos foi transversal a todas as linhas. Por exemplo, quando lançou o iPad de sétima geração, com um ecrã ligeiramente maior (10,2 polegadas), a Apple frisou que o novo tablet começa nos 329 dólares (399 euros em Portugal), um preço mais baixo que o esperado, e nem perdeu tempo a falar das versões premium e mais caras.
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No caso dos novos iPhone, o modelo standard, iPhone 11, começa nos 699 dólares, o que também é mais baixo que o previsto. O 11 Pro foi promovido como algo à parte, para um nicho, com destaque para os modelos mais baratos. O iPhone 8 agora custará 449 dólares e o Xr 599 dólares; níveis de preço mais acessíveis para modelos muito recentes, se considerarmos o posicionamento habitual da marca. “As pessoas estão a renovar os seus dispositivos mais lentamente, e com a Apple a atingir estes preços mais elevados, isto é uma resposta a estes fatores”, explicou Nguyen.
Estão a “tentar trazer as pessoas para a ideia de algo mais barato”, o que se refletiu também no ênfase em pagamentos às prestações e os descontos ao dar um iPhone anterior à troca. Tudo somado, a Apple parece estar à procura de maior volume de vendas e menos focada nas margens muito elevadas, como foi costume até aqui.
Outra alteração que ficou patente foi o foco na personalização e customização. A Apple de anos anteriores, em especial na altura de Steve Jobs, era dada a poucas opções e cultivava linhas mais homogéneas. O que se viu nesta apresentação foi uma vontade de mostrar aos consumidores que eles têm liberdade para escolherem precisamente o que querem. “Mil combinações de Apple Watch, seis cores diferentes para o iPhone 11, capas novas coloridas e transparentes” notou Tuong Nguyen. “Eles sempre foram mais comedidos, oferecendo duas ou três opções, e enfatizando outros pontos que não a personalização”.
E as vendas, serão boas?
As consultoras preveem que 2019 continuará a ser um ano de contração nas vendas de smartphones, apesar de uma melhoria no segundo semestre. No entanto, diz o analista da Gartner, “não me parece que alguém esteja à espera de vendas explosivas para qualquer uma das fabricantes”. O mercado está maduro, a economia global está tremida e os utilizadores demoram mais tempo a substituir os seus dispositivos. Por outro lado, alguns consumidores podem querer esperar pelos iPhone do próximo ano, visto que já correm rumores sobre as novidades que terão – incluindo 5G.
“A forma como a Apple posicionou a geração 11 deu a entender isso também”, frisou o analista. Há ainda que considerar que a capacidade de surpreender o mercado com smartphones bombásticos está diminuída. “Não me parece que estejamos num momento na tecnologia em que qualquer marca consiga lançar uma funcionalidade que enlouqueça os consumidores”, sublinhou Nguyen.
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O analista da Gartner lembrou que os telefones que trazemos nos bolsos e malas são melhores que muitos computadores. “Não são apenas bons o suficiente, são melhores que o que precisamos”, disse. A maioria das pessoas não consegue sequer aproveitar todas as capacidades dos modelos, o que torna a substituição pela última novidade basicamente desnecessária. “Temos estes dispositivos que são demasiados bons para o consumidor médio”, disse o analista, comparando-os a carros com velocímetros que vão até aos 300 km/hora.
Se uma marca oferecer um carro que vai até aos 400 km/h e custa mais dinheiro, a compra é inútil: o condutor nem sequer chega aos 200 km/h, portanto não vai precisar de ainda mais capacidade. Só que esse, tal como os novos iPhone, é um upgrade que muitos podem querer, apesar de não precisarem.
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