A ONU afirma e reitera constantemente que o combate à Covid-19 deve ter por base princípios de solidariedade, cooperação e assistência, a nível internacional. E o Papa Francisco na tradicional bênção Urbi et Orbi do dia de Natal, descreveu as vacinas como luzes de esperança, tendo apelado à partilha da cura, que não deve, disse, ser prejudicada por nacionalismos e individualismos.
É natural, pois a pandemia desencadeou uma profunda crise a vários níveis. O ano encerra com mais de 80 milhões de casos confirmados e de 2 milhão de mortes, estimando o Banco Mundial que chegados a 2021 mais de 150 milhões de pessoas se encontrarão em situação de pobreza extrema.
A adopção dos princípios apregoados pela ONU passa por garantir que a propriedade intelectual desempenha devidamente a sua dupla função: estimulando, por um lado, o desenvolvimento da ciência ao recompensar a invenção e, por outro lado, beneficiando a sociedade ao facilitar o acesso aos testes e tratamentos, incluindo vacinas, resultantes de tal actividade inventiva quando os mesmos se revelam fundamentais para perseverar a vida humana.
Há cerca de 2 décadas viveu-se dilema semelhante no que toca ao acesso aos medicamentos de combate à SIDA, dilema esse que culminou, em 2001, na aprovação por unanimidade de todos os Estados Membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) da Declaração de Doha – a qual permite a adopção de certas medidas para garantir o acesso a tais medicamentos.
Hoje a questão incide sobre a Covid-19, tendo a Índia e a África do Sul proposto, no âmbito da OMC, excepções temporárias a direitos de propriedade intelectual que vão, em função dos testes e tratamentos antivírus, para além da flexibilidade contida na Declaração de Doha.
A proposta foi rejeitada, entre outros, pelos EUA, pelo Reino Unido e pela EU, que notam que o objectivo em causa pode ser alcançado por outras vias, como o mecanismo COVAX – que é financiado por países desenvolvidos e visa garantir o acesso rápido, justo, equitativo e global às vacinas contra a Covid-19.
Infelizmente, segundo investigação feita pela Duke University o mecanismo COVAX reservou por ora cerca de 700 mil doses de vacina, enquanto certos países desenvolvidos (montando, segundo a Oxfam, a 13% da população mundial) já reservaram 6 mil milhões de doses.
Numa altura em as mutações podem pôr em causa a eficácia das vacinas, a partilha da cura e da esperança a nível global não é somente sinal de altruísmo, mas também de profunda inteligência – sendo que no caso de Portugal, em particular, há que não esquecer os PALOP unidos que devem estar não apenas pela língua como ainda pelos referidos princípios de solidariedade, cooperação e assistência.
Pergunta-se, então, se em tempos de crise, a vida humana não deve tomar primazia a nível mundial e não apenas nacional ou regional. E se o argumento ético não colher, sejamos pragmáticos, lembrando que se o acesso não for global a pandemia não cessará e continuará a impactar o mundo desenvolvido. “No one is safe until all of us are safe”.
Autores:
Patricia Akester, Fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual/Intellectual Property Office (GPI/IPO). Associate, CIPIL, University of Cambridge
Filipe Froes, Pneumologista, Consultor da DGS, Coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Médicos, Membro do Conselho Nacional de Saúde Pública