A propriedade Intelectual no século XXI: Por onde andam as Mulheres?

Neste mês de Março, em que celebramos a mulher, constato que segundo o «Women’s History Blog» entre 1855 e 1865 as mulheres obtiveram em média pouco mais de 10 patentes por ano enquanto os homens granjearam mais de 3.760 patentes (também por ano).

Estranho? Não. Sabemos que durante muito tempo a nível global a sociedade não viu com bons olhos o desempenho de qualquer actividade profissional pelos membros do sexo feminino, sendo que as tarefas exercidas por mulheres no domínio da propriedade intelectual não fugiram, naturalmente, a essa regra.

Consequentemente, por vezes, obras literárias, dramáticas, musicais ou artísticas criadas por membros do sexo feminino eram divulgados anonimamente ou sob discreto pseudónimo. Tal sucedeu, por exemplo, com Clara Schumann, esposa do célebre Robert Schumann e com Fanny Mendelsohn, irmã do aclamado compositor Felix Mendelsohn.

Outras vezes, a titularidade de patentes por invenções produzidas por mulheres era atribuída, não à inventora, mas ao marido, ao pai ou até a um irmão da inventora. Por exemplo, quando Sybilla Masters inventou, em 1715, um método inovador para processamento de milho indiano a patente correspondente foi registada em nome do marido.

O chamado «preconceito de género» então sentido no âmbito da propriedade intelectual, devia-se ao facto de que a aquisição de direitos (autorais ou relativos a patentes) por membros do sexo feminino era vista como algo impróprio, em harmonia, aliás, com o abrangente princípio jurídico que ditava que as mulheres não podiam deter qualquer tipo de propriedade.

Com o passar do tempo a visão social mudou, existindo menos impedimentos explícitos à conquista por criadoras e inventoras de direitos em sede de propriedade intelectual.

Todavia, diz-nos a investigação feita nesse campo que permanecem traços do dito «preconceito de género» no mundo da propriedade intelectual.

Por exemplo, pesquisas contemporâneas relativas a pedidos de reivindicação de patentes revelam que:

  • Existe uma diferença substancial entre o número de requerentes (de patentes) dos sexos masculino e feminino;
  • Empresas detidas por homens têm duas vezes maior probabilidade de alcançar uma patente do que empresas pertencentes a mulheres; e
  • As cientistas e engenheiras têm menos 50% de probabilidade de obter uma patente para proteger as suas produções intelectuais do que os seus colegas do sexo masculino;

Ao que parece, esta situação subsiste tanto no meio académico como no meio industrial, embora seja menos pronunciada neste último.

Note-se que quando as investigadoras conseguem obter patentes, diz-nos a investigação feita neste enquadramento que as invenções subjacentes são tão inovadoras e cruciais quanto as obtidas pelos colegas do sexo masculino. Ou seja: o «preconceito de género» que prevalece no plano da aquisição de patentes não pode ser atribuída ao mérito do output intelectual das referidas investigadoras.

Conclui-se que perdura, no reino das patentes, um «preconceito de género», perguntando-se se o mesmo continua a emergir noutras áreas criativas.

Infelizmente, pouco sabemos no que toca aos direitos autorais pois a maior parte do trabalho empírico realizado até hoje sobre o género na sua intersecção com a propriedade intelectual se tem concentrado no sistema de patentes.

O motivo é de foro prático: as revindicações de patentes geram um conjunto considerável de dados que podem ser facilmente colectados e disponibilizados para análise estatística, o que não sucede, em regra, no âmbito dos direitos autorais.

Mas um trabalho pioneiro, recente, que incidiu sobre pedidos de registo nos Estados Unidos de obras protegidas pelo Direito de Autor, indica que:

  • Os autores dessas obras são predominantemente do sexo masculino;
  • A participação dos membros do sexo feminino em tal processo de registo e de obtenção de direitos autorais monta a pouco mais de um terço de todos os registos de obras criativas.

Curiosamente a desigualdade em causa é menos pronunciado no que toca a obras literárias e artísticas e mais prevalente no atinente a obras musicais e cinematográficas, área em que os direitos relativos a mais de três quartos das obras registadas pertencem a homens.

Questão: Porque permanece, nos dias de hoje, esta diferença de género no quadro da propriedade intelectual?

A verdade é que a produção cultural não surge num vácuo, mas sim numa conjuntura social, cultural e histórica.

Por exemplo, quando se compara a produção intelectual que tem direito a tutela jurídica (como os projectos de arquitectura) com aquela que não a tem (como a culinária e a costura), torna-se desconfortavelmente óbvio que em termos de política cultural se partiu do princípio, historicamente, que os esforços intelectuais das membros do sexo feminino ao contrário dos emanados dos  do sexo masculino não careciam de incentivo ou recompensa nem a montante nem a jusante do processo criativo.

E no sector das patentes há que ter em conta, segundo dados empíricos existentes, que é mais provável que cientistas e engenheiras sejam excluídas das redes sociais que lhes permitiriam potencialmente obter apoio para comercialização dos seus produtos intelectuais, é menos plausível que cientistas do sexo feminino sejam convidadas a integrar conselhos científicos ou painéis consultivos de prestígio onde poderiam talvez encontrar parceiros para fins de inovação e que Venture Capitalists e outros financiadores têm tendência a levar menos a sério propostas inovadoras formuladas por membros do sexo feminino do que pelos seus colegas masculinos.

Solução?

Dir-se-á que mudar a lei para proporcionar maior protecção às mulheres na sua intersecção com a propriedade intelectual será, talvez, uma opção, mas antes de mais é preciso entender, com rigor, o escopo e as causas da disparidade de género na esfera da propriedade intelectual. É preciso reunir informação, de forma sistemática e empírica, avaliar e examinar os elementos assim obtidos e fazer recomendações cientificamente alicerçadas.

Por sorte, em Portugal, em contravenção da Convenção de Berna, o registo da obra tutelada pelo Direito de Autor é obrigatório, existindo, pois, dados para execução de tal estudo. A existência desses dados não é a norma pela Europa fora, sendo crucial que se aproveite a sua existência excepcional e se proceda à sua análise.

Note-se que a colecta de informação deve abranger género, mas também idade, rendimento, educação, residência etc. para que o Estado português possa examinar os dados demográficos dos autores em Portugal e determinar se a discrepância de género tem origem na lei da propriedade intelectual ou noutros factores completamente alheios a tal lei, só então se podendo configurar soluções adequadas.

Não esqueçamos que as mulheres trazem algo de si, de muito próprio, para o processo criativo, pelo que o panorama cultural se tornará mais rico se mais membros do sexo feminino penetrarem devidamente esse processo e nele integrarem as suas perspectivas, os seus gostos e a suas sensibilidades.

Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual