Borba: Porque teimamos em desafiar a natureza?

Opinião de Isabel Fernandes, professora do Departamento de Geologia e investigadora do Instituto Dom Luiz da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Confidence may impress the client, but it has little effect on the forces of nature
Alec Skempton, 1948

A tragédia que se verificou em Borba provoca profunda consternação a todos os que observam, estupefactos, um conjunto de circunstâncias que lhes parecem absurdas. Desde os técnicos mais especializados ao cidadão comum, todos são sensíveis ao facto de que a segurança de pessoas e bens é (ou deve ser) uma das prioridades de qualquer actividade económica. Em trabalhos de escavação, existe (ou deve existir) um conjunto de técnicos que zelam por uma obra rentável mas necessariamente segura.

Os geólogos, engenheiros geólogos, engenheiros de minas e engenheiros civis, os donos de obras e os trabalhadores têm consciência do risco inerente a uma qualquer escavação. Por isso trabalham (ou deviam trabalhar!) em equipas multidisciplinares, nas quais as atividades e conhecimentos técnicos se complementam na demanda das soluções mais adequadas aos problemas que se vão colocando. Isto porque se está perante materiais naturais, que mostram variações ao longo da sua extensão, que contêm fracturas, que são o caminho preferencial para a circulação de água, acelerando os processos de meteorização, e constituem elementos que potenciam a instabilização de escavações em maciços rochosos. É, por isso, necessário que exista o acompanhamento e cartografia geológica-geotécnica durante todo o desenvolvimento de uma escavação, para identificação de potenciais movimentos de massa e apoio na definição de soluções de estabilização adequadas.

É, por isso, necessário que exista o acompanhamento e cartografia geológica-geotécnica durante todo o desenvolvimento de uma escavação, para identificação de potenciais movimentos de massa e apoio na definição de soluções de estabilização adequadas.

Todos os aspectos relativos à exploração de pedreiras, que constitui uma importante actividade económica no nosso país, estão devidamente contemplados em decretos-lei e regulamentos (vide Decreto-Lei  340/2007, de  12 de Outubro e Decreto-Lei n.º 270/2001, de 6 de Outubro e ainda este). No entanto, a situação que se observa na pedreira em que ocorreu o acidente e nas adjacentes é, no mínimo, preocupante: foram talhados taludes verticais com dezenas de metros de altura, em maciço fracturado, o que constitui uma combinação que tem todos os componentes para algo correr muito mal.

É sabido que para haver exploração é necessário um Plano de Pedreira (à data do pedido de concessão) devidamente aprovado, que necessariamente inclui a caracterização geológica, hidrogeológica e geotécnica do local. No entanto, como já referido, a escavação é um processo dinâmico que exige um acompanhamento cuidado por técnicos qualificados (cuja remuneração é insignificante numa actividade económica em que se exploram e vendem toneladas de pedra).

Por razões económicas (qualquer paragem na produção é traduzida em dinheiro) e para proteção dos trabalhadores, várias medidas podem ser adoptadas minimizando a possibilidade de ocorrência de movimentos de massa. A este propósito, por exemplo, diz a lei para escavações a céu aberto “que o desmonte se faça em degraus direitos e de cima para baixo, salvo se as entidades competentes aceitarem que se faça de outro modo”. Também se encontra na lei uma referência muito importante relativamente às zonas de defesa: “salvo legislação específica em contrário, as zonas de defesa devem ter as seguintes distâncias… para estradas municipais e nacionais a distância de protecção (zona de defesa) é de 50 metros”.

Vejamos, agora, o infeliz acidente em análise. As imagens aéreas divulgadas, tanto anteriores como posteriores ao movimento de massa, mostram duas pedreiras contíguas, entre as quais se encontrava a “Estrada Real” (cujo nome nos elucida sobre a sua idade), e relativamente à qual a zona de defesa estipulada por lei foi amplamente devastada. Atentem às imagens e verifiquem que, para além da estrada que ruiu, existem ainda numerosos caminhos e plataformas nas cristas dos taludes de corte verticais resultantes das explorações de mármore.

Seria possível evitar o colapso da estrada? Claro que sim, se a lei tivesse sido cumprida!

Seria possível evitar o colapso da estrada? Claro que sim, se a lei tivesse sido cumprida! No entanto, o cumprimento da lei relativamente à zona de defesa não teria evitado o deslizamento daquele talude! A estrutura do maciço rochoso, que está no local há milhões de anos, que é anterior a qualquer estrada e a todas as pedreiras possíveis, tem que ser analisada, interpretada e respeitada. E é nesse âmbito que temos leis a cumprir, elaboradas por técnicos que são sensíveis às questões naturais e às leis mais básicas da física.

Estamos, portanto, perante uma situação em que se reúnem várias condicionantes à ocorrência do acidente: a fracturação e alteração do maciço, a existência de taludes de escavação verticais e a inacreditável proximidade de uma estrada. É do conhecimento da comunidade científica que os acidentes estão, usualmente, associados a um conjunto de fatores potenciadores e não apenas um único. Neste caso concreto, a chuva abundante terá sido, aparentemente, um dos fatores desencadeantes do fenómeno que se associou às outras circunstâncias já existentes no local: umas causadas pelo homem, outras inerentes às características geológicas locais, ou seja, à natureza geológica.

Em Portugal, ao contrário de outros países como a vizinha Espanha, os EUA ou o Japão (entre muitos outros), a Geologia é ainda encarada como uma ciência teórica e empírica, que se dedica ao “estudo das pedras”

Em Portugal, ao contrário de outros países como a vizinha Espanha, os EUA ou o Japão (entre muitos outros), a Geologia é ainda encarada como uma ciência teórica e empírica, que se dedica ao “estudo das pedras” e cuja contribuição torna qualquer relatório mais colorido e é até interessante para documentários! Desengane-se, quem assim pensa: basta pesquisar um pouco para constatar a importância do trabalho do geólogo em geral, e do geólogo de engenharia, neste caso particular.

Não será o momento para olhar para a Geologia como uma profissão obrigatória e essencial a integrar em entidades públicas e privadas, em entidades fiscalizadoras e executantes, em autarquias e pedreiras? A segurança deve ser a palavra de ordem para o futuro, para que os acidentes não tenham que ser lamentados, mas evitados, e acredito que, neste âmbito os geólogos têm um papel de grande relevância.

E Deus comprou um tablet