Pandemia, monitorização e liberdades pós lockdown

Covid-19, vírus
O novo Covid-19. Foto: EPA/National Institutes of Health/Niaid-RML

Opinião de Patricia Akester fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual.

Segundo um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgado em Fevereiro de 2020 o chamado contact tracing, que permite georeferenciação de infectados, é crucial para conter a propagação do vírus, podendo ajudar a interromper cadeias de infecção e a reduzir os riscos de novas fases de transmissão do vírus.

Seguindo tal orientação vários Estados implementaram (alguns já haviam implementado) medidas tecnológicas de vigilância, nomeadamente, mas não só, por meio de contact tracing apps, que permitem, entre outras coisas, precisar a sucessão de contactos entre cidadãos bem como a sua localização. Vejamos alguns exemplos.

Começando pela China, a população tem uma app, de nome Alipay Health Code, instalada nos telemóveis que famosamente atribui a cada utilizador um código de cores (vermelho, amarelo ou verde) e indica risco de contágio, necessidade de quarentena e permissão/proibição de acesso a locais públicos.

Em Singapura reina uma app chamada «TraceTogether» que, registando a localização de cada utilizador do sistema, possibilita que as autoridades avisem utilizadores do mesmo sistema que se tenham porventura cruzado com um utilizador infectado com o vírus. O lema é «protect ourselves, protect our loved ones, protect our community».

Na Coreia do Sul o Governo não se ficou pela tecnologia de contact tracing, tendo começado por recorrer a imagens de CCTV, à localização de telemóveis e a registos de aquisições feitas com cartão de crédito para determinar os movimentos de cidadãos infectados com o vírus e tendo, subitamente, começado a disseminar publicamente a localização de tais cidadãos.

Passando da Ásia para a Europa, em França, a app de eleição do Governo replica a app singapurense em versão soft. Chama-se «StopCovid», a instalação é voluntária, não regista os movimentos do utilizador, listando apenas os seus contactos recentes (lista essa que não é disponibilizada ao Governo) e dependendo do utilizador infectado com o vírus o fornecimento dessa informação ao sistema (sistema esse que alerta, então, os contactos da lista relevante).

Por último, em Portugal, Suas Exas. o Presidente da República e o Primeiro Ministro anunciaram recentemente aos media que a execução de «contact tracing» é à partida inconstitucional, pelo que qualquer medida deste tipo terá de assentar em parecer prévio do Tribunal Constitucional e da Provedora de Justiça e de garantir a privacidade dos cidadãos. Ainda bem que assim afirmaram, porque, entretanto, também por cá está a ser criada tecnologia de monitorização e rastreamento de cadeias de transmissão, com o objectivo de monitorizar utilizadores que estejam potencialmente infectados com o vírus, priorizá-los, identificar contactos tidos até à emergência de sintomas, alertar tais contactos e determinar possíveis cadeias de transmissão.

«Lockdown» versus tecnologias de monitorização

Os arautos da tecnologia de monitorização intrusiva afirmam que o «lockdown» da sociedade como um todo sacrifica múltiplos direitos fundamentais enquanto a referida tecnologia apenas imola o direito à privacidade dos utilizadores, evitando, de mais a mais, a imposição de «lockdowns».

Ou seja, dizem: mais vale suspender, temporariamente, o direito à privacidade em nome da saúde pública, possibilitando assim uma atenuação dos requisitos de distanciamento social, do que permanecer em «lockdown» com a inerente suspensão de múltiplos direitos fundamentais (entre os quais a liberdade de livre deslocação).

Mas o Roteiro Europeu Comum com vista a levantar as medidas de contenção da COVID-19 vai mais longe, almejando à implementação de tecnologia que viabilize o cessar do «lockdown» sem desrespeitar os direitos fundamentais dos utilizadores.

Reconhece o referido roteiro que certas apps para telemóveis que permitam avisar os cidadãos de um risco acrescido pelo facto de terem estado em contacto com uma pessoa que esteja infectada com o vírus assumirão particular relevância na fase de supressão das medidas de «lockdown» – uma vez que o risco de infecção aumentará com a retoma gradual dos contactos entre as pessoas.

Decreta, todavia, o Roteiro Europeu Comum, em nome dos direitos fundamentais dos utilizadores, que a utilização de apps móveis de rastreio e alerta deve obedecer a certas regras:

A instalação dessas apps requer o consentimento dos utilizadores;

As apps devem respeitar as regras comunitárias atinentes à protecção da privacidade e dos dados pessoais;

As autoridades nacionais de saúde devem ser envolvidas na concepção das apps;

O rastreio da proximidade entre telemóveis só pode ocorrer de forma anónima e agregada, não podendo incluir o registo dos movimentos dos utilizadores;

Os nomes dos utilizadores potencialmente infectadas não podem ser divulgados a outros utilizadores;

As apps devem estar sujeitas a rigorosos requisitos de transparência e ser desactivadas logo que a crise da COVID-19 termine, sendo que quaisquer dados remanescentes deverão ser apagados.

E é viável a salvaguarda de certos direitos fundamentais pela tecnologia que subjaz as apps móveis de rastreio e alerta?

Sim: há vários projectos de investigação e desenvolvimento em curso, pelo mundo fora, que procuram que as apps em causa preservem, entre outros direitos fundamentais, a privacidade do utilizador. Seguem três exemplos:

Projecto Covid-Watch – Lema: «Reduce the spread of COVID-19 without increasing the spread of surveillance»;

Private Kit: Safe Paths (http://safepaths.mit.edu/) – Lema: «Privacy-by-Design Covid19 Solutions using GPS+Bluetooth for Citizens and Public Health Officials»; e

A iniciativa Monitorcovid19.pt – Uma pareceria do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) com o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) cuja app será (segundo foi dito ao Dinheiro Vivo) voluntária, não partilhará dados sobre o utilizador e não recorrerá à localização do dispositivo.

Ou seja, a salvaguarda de certos direitos fundamentais do utilizador, pode e deve ser fornecida pela tecnologia que subjaz as apps móveis de rastreio e alerta.

Estado de Direito

Conclui-se que, embora algumas tecnologias de monitorização imponham severas restrições aos direitos fundamentais dos utilizadores, não há que seguir esse caminho. A salvaguarda desses direitos pode e deve ser fornecida pela tecnologia contida nas apps móveis de rastreio e alerta.

Mas essa promessa não chega. Para que a preservação de tão cruciais direitos não fique somente nas mãos das empresas de tecnologia responsáveis pela criação de tais apps, as autoridades nacionais de saúde devem ser envolvidas na sua concepção, fornecendo o seu aval, caso a caso.

A verdade é que, muitas das medidas de combate à pandemia que têm emergido pelo mundo fora, encontram-se alicerçadas na concessão de poderes extraordinários a quem de direito, em sede de estado de emergência, medidas essas que precisam, consequentemente, de ser temporárias, necessárias e proporcionais ao objectivo a alcançar, carecendo a sua implementação de cuidadosa supervisão.

The answer to the machine may be in the machine but we need to monitor the machine.

Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.