Privacidade no data science: “a ética deve ir muito além da lei”

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Fonte: Pixabay

Maioria das empresas sem consciência da vantagem em usar machine learning e pessoas especializadas, diz líder de associação portuguesa de data science.

Data Science ou ciência dos dados está longe de ser um termo popular em Portugal. Com o aumento da importância para as empresas e as pessoas em geral da inteligência artificial – usada já nos nossos smartphones e em várias aplicações que nos passam despercebidas – é uma função que ganhou preponderância a nível mundial.

Os cursos especializados nessa matéria ainda são escassos para o que o país precisa, ao ponto de um dos unicórnios do país – empresa que vale mais de mil milhões de dólares -, a Farfetch (que emprega milhares de engenheiros no norte de Portugal), ter o seu polo de data science em Londres, “por falta talento e experiência na área em Portugal”.

Fernando Matos
Fernando Matos, presidente da DSPA

Neste contexto, Fernando Matos, presidente da jovem associação de Data Science do país – Data Science Portuguese Association (DSPA) -, explica-nos em entrevista que “faltam alguns milhares” de data scientists ou cientistas de dados no país e que embora a pandemia tenha trazido “a inevitabilidade da transformação digital para muitas empresas”, nem por isso fez expandir como deveria o uso de ciência dos dados. O responsável admite que há muito para fazer em termos de criar um ecossistema para que existam mais especialistas nesta área da inteligência artificial em Portugal, embora existam “um crescimento exponencial na ofertas de cursos”.

Nesse aspeto, Fernando Matos reconhece “um esforço considerável das universidades e até de empresas privadas em criar novos cursos dentro desta área, alguns mais rápidos e de requalificação”. O que falta então é cativar “mais jovens de 15 ou 16 anos para o data science, mostrando o que é a impressionante taxa de empregabilidade que existe”.

“A maioria das empresas nacionais são muito pouco conscientes da necessidade e do potencial que esta área apresenta”, explica o responsável que admite que não basta nomear um responsável da área e arranjar estagiários, lamentando que ainda “são muito poucas as empresas que estão a desenvolver dezenas de projetos em data science”. “Quando outras empresas ‘acordarem’ ou forem obrigadas a fazê-lo pelas circunstâncias, esse número de profissionais de data science necessários será de algumas dezenas de milhares”, adianta.

A associação assinou no início do ano um acordo de cooperação com a GS1 Portugal – uma organização sem fins de lucrativos de utilidade pública com 8 mil empresas associadas e conhecida por introduzir os códigos de barras no país. O objetivo passa precisamente para mostrar aos líderes em Portugal a diferença que utilizar o melhor da tecnologia pode fazer pelos seus negócios.

“Ter mais dados e usá-los para se ser mais eficiente e tomar decisões mais informadas faz toda a diferença”, explica Fernando Matos, que diz que é preciso ter uma estratégia para se saber quais os dados de que se precisa e qual a melhor forma de os usar. “Senão, corremos o risco de perder muito tempo a procurar e tornar os dados utilizáveis”. Uma das utilizações com maior capacidade de eficiência em Portugal passa pela previsão dos stocks que devem existir. “O uso de dados de forma analítica traz uma previsão que pode reduzir em muito os custos, sobre o que vai ser a procura e o consumo. Neste aspeto, os modelos de previsão da procura devem ser usados em detrimento do plano de vendas”, admite.

Um dos conselhos que deixa é precisamente os de começar com um teste pequeno na empresa e depois expandi-lo, “focando a operação em dados que vão ter resultados rápidos”, isto porque se se demorar muito, “corre-se o risco dos dados já estarem desatualizados, deixando de ser úteis para decidir”.

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Colaboração entre instituições e empresas

Fernando Matos acredita que a cooperação entre empresas na partilha de dados analíticos pode ajudar ao ecossistema português a recuperar o atraso face a outros países. “Projetos como os que a GS1 está a fazer a nível nacional podem fazer a diferença”.

A organização sem fins lucrativos está a criar uma base de dados em que participam os vários associados com uma standardização desses dados e de metadata, que inclui cartões de identidade para os vários produtos. “Acredito que possa ajudar em muito todas as empresas que vão fazer coisas nestas áreas, para não estarem todos a tentar reinventar a roda desde raíz”, explica.

E o que é o data science e um data scientist?

É um profissional responsável por reunir, analisar e interpretar grandes quantidades de dados, numa área que mistura matemática, estatística, modelação (criação de modelos) e computação. “O seu trabalho ajuda a resolver as grandes questões que orientam as principais organizações”.

Para o data science “há muitas definições”, diz Fernando Matos. Com 350 associados, a DSPA quer ser o ponto de encontro de profissionais e separar o trigo do joio. “Há milhares que dizem que são data scientists no LinkedIn e não o são, nem em formação nem em experiência, enquanto há pessoas com essa experiência que não dizem que são data scientists”. Fernando Matos tem um projeto de investigação para certificação dos data scientists e de literacia, “podendo haver várias carreiras dentro desta área, como business translator, data engineering, analista”. “Há cursos que não referem qualquer ligação à data science mas são importantes, como física, engenharias, até na área biomédica existe”, explica.

O responsável cita ainda um estudo de 2019, que mostram que a grande maioria das empresas, 70%, está a fazer pouco ou nada em data science – empresas com 0 (15%) a 6 pessoas a trabalhar nesta área. “Se hoje já há escassez de recursos e só se está a fazer 30 ou 40% do que deveria ser feito, diria que está mesmo muito por explorar no data science”.

Privacidade: “a ética deve ir muito além da lei”

Já relativamente à privacidade e segurança no tratamento dos dados, especialmente quando se trata de dados pessoais, Fernando Matos admite que é um tema fulcral e em que deve haver sensibilidade e bom senso das empresas. A sua associação já apresentou um código de conduta e ética que não substitui os regulamentos existentes, como o europeu RGPS, mas “pretende mostrar as melhores práticas”. “Quisemos alertar para temas não evidentes nesses códigos e sensibilizar as empresas e quem lá trabalha que a ética nestes temas deve ir muito além da lei”. O responsável admite que o consumidor em geral procura e exige cada vez mais a personalização, mas “personalizar com ética é mais difícil mas também é possível e evita problemas futuros”.

Segue-se a parte final da entrevista em formato pergunta-resposta:

O que mudou com a pandemia na área da data science? As empresas ficaram mais conscientes da importância da tecnologia, machine learning?

Falando numa perspetiva macro, é talvez arriscado afirmar que as empresas tenham ficado mais conscientes da importância do data science com a pandemia, embora não seja excessivo dizer que as mesmas se depararam com a inevitabilidade da transformação digital. Não numa perspetiva de continuidade do escalar das oportunidades de negócio e da própria transformação dos processos das organizações que esta área tem potenciado de forma crescente, mas sim na perspetiva da sua própria “resistência” aos impactos da economia nos negócios e na própria atividade da empresa em diversos casos.

Ainda assim, e só o tempo o dirá com alguma robustez, a urgência com que as organizações se depararam no apetrechamento de ferramentas de suporte às suas operações, tanto internas, como sobretudo para o assegurar da manutenção de projetos em clientes e de alguns dos seus próprios processos de negócio, faz-nos querer pensar que a pandemia contribuirá para uma economia mais data-driven.

Quantos associados têm na associação? E quem são eles?

DSPA tem neste momento um número próximo dos 350 associados, entre individuais e coletivos, aos que acumula algumas dezenas de organizações e entidades de diversas naturezas em projetos e parcerias diversas, nacionais e internacionais. Há, porém, que ter em conta que um associado coletivo (que poderão ser empresas prestadoras de serviços e empresas clientes de serviços de data science, cidades, academias, laboratórios de investigação, entre outras) é considerado com um registo único nesta conta, mas que funciona como canal junto de vastas comunidades de indivíduos pertencentes às mesmas. Se a isto lhe acrescentarmos o dinamismo e alcance da DSPA junto de diversos outros stakeholders do setor através de social media, a DSPA pode legitimamente afirmar-se como player de referência na promoção e representatividade do setor em Portugal.

Tem dados sobre o número de cursos de data science em Portugal e estudantes? Tem havido o crescimento necessário para o país evoluir?

São muitas as entidades de ensino – universidades, faculdades, institutos politécnicos – e empresas privadas que dispõem de oferta de cursos em data science em Portugal, tendo nós vindo a observar o desenvolvimento dessa mesma oferta ao longo dos últimos anos. Tal é absolutamente necessário para alimentar as necessidades – e oportunidades para a economia – do setor. Uma das dificuldades existentes consiste na rapidez da evolução da tecnologia e das técnicas que são aplicadas no domínio do data science, pelo que a aposta nacional – e aqui falamos com este grau de grandeza e ambição – passa justamente por adequar formatos de ensino à velocidade e conteúdos que o setor precisa. Este esforço, de todos per si, mas também numa ótica de movimento concertado, é também uma das premissas que esteve na base da fundação da DSPA, atuando como plataforma agregadora dos stakeholders para em conjunto dinamizar a área da formação, quer do ponto de vista da capacitação quer da angariação de educandos, inclusive numa perspetiva de requalificação.

Quantos profissionais nessa área o país precisa, têm ideia?

Quanto ao número de profissionais que o país precisa, e considerando que o data science é, essencialmente, uma questão de gestão, e que a transformação digital só se fará de forma robusta tendo por base a própria evolução de uma cultura de dados na sociedade e na economia, a melhor resposta, será que hoje faltam alguns milhares. Mas com a maioria das empresas nacionais muito pouco conscientes da necessidade e do potencial que esta área apresenta.

Algumas empresas, muito poucas, estão a desenvolver dezenas de projetos no domínio do Data Science, a grande maioria pouco mais fizeram que nomear um responsável da área, contratar um ou outro data scientist e uns estagiários. E empresas da mesma dimensão, pelo menos não será exagerado dizer que quando essas empresas “acordarem” ou forem obrigadas a fazê-lo, esse número será algumas dezenas de milhares de profissionais.

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