Como ganhar? “Com atletas talentosos, treinadores astutos e cientistas metódicos”

Ciencia desporto

Pré-publicação de excerto do livro Virar o Jogo, do português editor da Wired, João Medeiros, sobre a forma como a ciência e tecnologia tem ajudado em vários desportos. Com análise aos avanços de portugueses no treino em futebol.

Num misto de narrativa e rigor analítico, Virar o Jogo procura perceber e explicar a história da ciência por detrás dos desportos — o que faz com que alguns atletas sejam extraordinários e como determinados países e equipas conseguem ir mais além em competições desportivas. Uma leitura repleta de motivos de interesse para todos os que desejam saber como atletas de topo, como o Cristiano Ronaldo, encontram e mantêm a sua vantagem.

O livro de João Medeiros desenvolve depois como evoluíram, entre outros, os métodos de trabalho de figuras como a de Carlos Queiroz e o seu papel pioneiro na revolução do treino desportivo. Outro dos exemplos no livro é o do português Pedro Marques (trabalha atualmente com o Benfica e teve um papel fundamental na formação no Manchester City durante oito naos), que ajudou ao sucesso do bicampeão inglês Manchester City.

Embora seja um livro amplo e publicado inicialmente em inglês e fora de Portugal, Medeiros explica porque razão Portugal tem muitos dos melhores treinadores e jogadores no mundo, apesar de sermos um pais pequeno.

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Excerto da introdução do livro: Virar o Jogo (Edição Vogais)

Em 2012, fiquei obcecado por uma história que combinava ciência e desporto, a propósito de uma comunidade de investigadores, treinadores e analistas que, ao longo dos últimos 20 anos, foram pioneiros na busca de novos modos de abordar a mais fundamental questão do desporto: o que é preciso para vencer?

Tudo começou com uma observação casual. Nos Jogos Olímpicos de Londres, dei por mim a perguntar-me como é que a equipa olímpica britânica se tinha tornado tão boa. Afinal, nos Jogos de 1996 em Atlanta, a Grã-Bretanha tinha acabado em 36.º lugar na lista de medalhas, ficando abaixo de países como a Argélia, a Bélgica e o Cazaquistão. Foi o seu pior resultado de sempre, um desempenho calamitoso considerado pela imprensa britânica como um escândalo nacional.

O governo sentiu-se obrigado a intervir. Prometeu-se dinheiro; foi criada uma agência específica, a UK Sport, para distribuir os fundos, grande parte dos quais oriundos das receitas da National Lottery. Os critérios para a atribuição das verbas eram rigorosos. O dinheiro não podia ser usado para aumentar a participação das bases nem sequer para melhorar o desempenho dos atletas. Em vez disso, tinha de ser usado para atingir um determinado número de títulos mundiais e de medalhas de ouro olímpicas. Esta política tornou-se conhecida como o «sistema de intransigência», com um investimento dirigido para os desportos com maiores possibilidades de alcançar medalhas.

Por outras palavras, a UK Sport investiu no sucesso. E nas três Olimpíadas seguintes — Sydney, Atenas e Pequim — a Team GB (Seleção Britânica) subiu consistentemente nas tabelas. Para os Jogos de Londres, gastaram-se aproximadamente 500 mil milhões de libras (560 mil milhões de euros) durante o ciclo olímpico de quatro anos. Ainda assim, é uma quantia significativamente inferior aos valores gastos por países como a Coreia do Sul e o Japão, e um grãozinho de areia comparado aos milhares de milhões investidos pelas superpotências desportivas da Rússia, China e Estados Unidos.

Com o dinheiro da National Lottery construíram-se centros desportivos nacionais, e os atletas puderam treinar a tempo inteiro. O financiamento também apoiou, em 2002, o lançamento do ramo de tecnologia, ciência e medicina da UK Sport, o Instituto Inglês do Desporto (EIS — English Institute of Sport). No cerne da missão do EIS estava a disponibilização de cientistas de desporto a todas as equipas desportivas nacionais. O EIS tinha como modelo o Instituto Australiano do Desporto, que, no virar do milénio, era considerado o melhor do mundo no que dizia respeito à ciência do desporto. Em 2012, já se tornara evidente que o EIS se tornara agora no modelo a seguir.

Então, como é que uma nação desportiva se reinventou tão completamente em menos de uma geração? Foi a pergunta que fiz a Peter Keen, diretor de desempenho da UK Sport. «Surpreende-me que tão pouca gente tenha até agora feito essa pergunta», respondeu-me. «Sempre que abordei o assunto, as pessoas acham-me clínico e frio e isso choca com a ideia que fazem do desporto como algo poético, mas vou dar-lhe uma resposta franca e conclusiva.» Ficou em silêncio alguns momentos. «O que aconteceu nos últimos 20 anos é que interagimos com o desempenho de modo racional e científico. Para podermos aplicar o método científico, precisamos de dados e da capacidade de colocar hipóteses e de as analisar nos termos mais simples. Uma parte desta fórmula de sucesso é a capacidade de ser objetivo. Esse nível de objetividade, quando é explorado e canalizado, pode ser muito poderoso.»

Depois de Londres 2012, a UK Sport fez dois anúncios significativos. O primeiro, feito publicamente em dezembro de 2013, foi o objetivo da Grã-Bretanha de trazer para casa 66 medalhas nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016, o que a tornaria na primeira nação anfitriã a obter um número superior de medalhas nos Jogos imediatamente a seguir. O segundo foi feito internamente, a todos os treinadores, diretorese cientistas do desporto.  Um processo de planeamento de desempenho, «O Que é Preciso para Ganhar», iria ser implementado por todo o sistema britânico de alto desempenho. À medida que ia mergulhando no mundo do rendimento de elite e conhecendo alguns dos cientistas do desporto nos bastidores — a «equipa por trás da equipa» — envolvi-me cada vez mais na sua jornada de quatro anos em direção ao Rio.

Durante esses quatro anos, a frase «O Que é Preciso para Ganhar» surtiu gradualmente efeito junto dos treinadores e cientistas, como expressão de uma filosofia comum. Mas os conceitos que sustentavam a abordagem estavam longe de serem novos. De certo modo, tudo começou como uma grande experiência: repensar a forma como o desporto é jogado, como é exercido, como os atletas treinam e como os treinadores ensinam. Esta experiência teve as suas origens no Instituto Politécnico de Liverpool (hoje a Universidade John Moores de Liverpool), lar da primeira faculdade de ciências do desporto do mundo. Foi aí, no final da década de 1980, que um grupo heterogéneo de indivíduos — um matemático, um fisiologista, um psicólogo e um ex-jogador de basquetebol — se tornou pioneiro nos meios de analisar o desempenho. Para isso, passaram tempo nos courts e nos balneários, tornaram-se um incómodo nos clubes, e carregaram com computadores para campos de futebol.

Estudaram de perto treinadores de elite, provando que mesmo os melhores de entre eles não conseguiam recordar com precisão os momentos mais cruciais de um jogo; levaram a cabo estudos que, pela primeira vez, quantificaram o esforço fisiológico dos jogadores de futebol; e desenvolveram software que podia prever os vencedores de torneios de squash. Esta abordagem inédita ao desempenho sofreu a sua primeira mutação nos primeiros dias do Instituto Inglês do Desporto, quando muitos dos mesmos cientistas do desporto que tinham sido pioneiros no recurso a estes métodos num ambiente académico foram integrados diretamente nas seleções nacionais. Agora, a sua tarefa principal já não era fazer avançar a ciência, mas ajudar a ganhar medalhas de ouro.

Em vários locais, em circunstâncias semelhantes, emergiram as primeiras iterações de sucesso deste modelo: no squash, no râguebi, no ciclismo e na Fórmula 1. Enquanto o sistema de alto desempenho do Reino Unido se preparava para Londres 2012, estes métodos para alcançar o sucesso foram-se espalhando, e os resultados rapidamente se tornaram visíveis em todo o mundo. Depois, em 2016, nos Jogos do Rio, a Grã-Bretanha fez história, ao vencer não apenas mais duas medalhas do que as 65 obtidas em Londres 2012, mas também ao conseguir o segundo lugar na tabela das medalhas, acima da China.

O verdadeiro sucesso, claro, deveu-se a indivíduos talentosos e dedicados. Por trás de cada medalha estava um triunvirato intimamente interligado: um atleta talentoso, um treinador astuto e um cientista desportivo metódico. E estes revelavam, invariavelmente, uma história de luta, conjeturas, dedicação e conflito. Isto é verdade para todas as histórias de competição e desporto. Mas este livro debruça-se sobre o menos conhecido dos elementos da equação: o cientista do desporto. Os cientistas do desporto estão por trás de muitas equipas de sucesso — vencedores de campeonatos europeus de futebol, campeões do mundo de râguebi e medalhados olímpicos. Ajudaram as equipas a acabar com ciclos infinitos de derrota, e a garantir que os vencedores mantivessem vantagem competitiva. Estas são as pessoas que, através de uma abordagem de tentativa-e-erro ao método científico, tentaram responder à questão fundamental do desporto: o que é preciso para ganhar?

(…)

 

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O mundo do futebol, contudo, manter-se-ia ainda ignorante das suas conclusões durante muitos anos. Reilly escreveu sobre o ceticismo — quando não hostilidade — do jogo para com os inquéritos científicos, em consequência da sua «natureza multifacetada e enigmática», no seu livro de 1979, What Research Tells the Coach About Soccer: «O decurso de um jogo desafia frequentemente as previsões de sucesso, os resultados previstos com confiança são revertidos, e as derrotas inesperadas são rapidamente desvalorizadas pelos jogadores e pelos treinadores como sendo acidentes equivalentes a atos divinos.

Em suma, o mito ainda permeia em grande parte o mundo do futebol […] as pessoas de fora que pretendam representar uma perspetiva objetiva e distanciada são evitadas ou recebidas com frieza.» Seriam necessários vários avanços no squash, e o desenvolvimento de uma nova start-up tecnológica, para o futebol começar a dar verdadeiramente atenção ao que a ciência podia oferecer.

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