É uma revolução invisível. O próximo salto tecnológico dos agricultores é o da digitalização. Em Portugal, são poucos os que já arriscaram.
João Coimbra é um super- produtor agrícola nacional. E, como ele, há poucos. Na Quinta da Cholda, na Golegã, consegue tirar da terra um rendimento três vezes superior à média nacional, apostando na monocultura intensiva de milho, na tecnologia de precisão, na automação e em big data (com a gestão de dados) para superar o défice de competitividade deste tipo de cultura.
“Estamos a aproximar-nos das 18 toneladas”. São mais 12 toneladas por hectare que o rendimento médio daqueles que apostam no mesmo cereal em Portugal, e resultado de 14 anos de aperfeiçoamento dos métodos de gestão.
As tecnologias de gestão de dados são a força avançada da inovação em vários setores económicos, e estão a chegar à agricultura, ainda com um nível de integração comparativamente baixo na Europa. A agricultura inteligente, ou smart farming, é o novo campeonato em que todos os produtores terão de jogar, mais cedo ou mais tarde.
Mas que para muitos agricultores portugueses significará uma transição difícil. São dos mais velhos da Europa, e muitos estão ainda relutantes em confiar a um sistema informático aquilo que o olhar e a experiência sempre regularam: o tempo das culturas.
“O salto está na passagem de fazer agricultura com um elevado grau de empirismo para a possibilidade de integrar na tomada de decisão – de rega, de fertilização, dos tratamentos fitossanitários – um novo conjunto de ferramentas que antigamente não estavam disponíveis: sensores de diferentes tipos, imagens de satélites que dão uma ideia das performances das culturas em cada zona da parcela de terreno, e a possibilidade de ajustar a gestão de cada uma delas. O desafio é este”, afirma Ricardo Braga, investigador do Instituto Superior de Agronomia e um dos peritos ouvidos pelo governo no planeamento agrícola nacional.
João Coimbra é um dos que abrem caminho. É um experimentador e um divulgador. No escritório da Cholda, acumula camadas de dados que se sobrepõem para afinar ao limite cada ponto do terreno nos cerca de 600 hectares que explora. Cada informação está georreferenciada em mapas que indicam altura dos solos, os minerais que contêm, aquilo que rendem. Ao agricultor cabe otimizar a produção e calibrar a informação num comando que chega através de uma pen às alfaias agrícolas.
“É como ver como é que o Ronaldo consegue dar um salto de dois metros. Vê-se o tamanho do músculo, a sapatilha, o que ele comeu 15 dias antes. É isso que fazemos”, compara o produtor.
De um lado está a otimização da produção. Do outro, a poupança. Aqui, “é ir à procura da lei do mínimo”, explica João Coimbra. Os sensores já disponíveis no mercado, usados em tratores autoguiados, são uma das ferramentas mais adotadas. Permitem reduzir o desperdício de sementes e fertilizantes nas passagens das máquinas nos terrenos. Não há sobreposições.
Depois, as imagens de satélite, com tecnologia de análise de índices de humidade e ligadas a sistemas inteligentes, gerem, no limite, a água que é necessário deitar às plantas.
Na estrutura de custos dos agricultores portugueses, este é um dos fatores mais importantes. A rega, entre manutenção e gastos de energia, representa um terço das despesas da produção agrícola no país, que ao longo dos anos têm vindo a crescer acima dos ganhos de produtividade. Mas já há empresas no mercado que prometem poupanças de até 50%.
Rega com poupança máxima
A Trigger Systems é uma startup portuguesa fundada por engenheiros agrónomos. Desenvolveu controladores inteligentes que, a partir de informação sobre o comportamento das plantas e da meteorologia, e até dos tarifários de energia, dirige a rega para o máximo de poupança. “Os sistemas vão fazendo cálculos e modelando para determinar exatamente qual a água e a fertilização que cada planta precisa.
Quando erram, o agricultor pode sinalizá-lo, e eles autoaprendem (machine learning). Ao fim de algum tempo, começam a ser tão bons a conduzir a rega como um agricultor seria se estivesse acordado 24 sobre 24 horas a olhar para as imagens de satélite e para a meteorologia preditiva”, descreve Francisco Manso, fundador.
Manso vê muito potencial na agricultura inteligente em Portugal. “O processo é muito complexo, difícil, tem milhares de variáveis, mas de facto tem um prémio: no fim, conseguimos fazer uma alteração de produção muito grande”, diz.
A investigação e desenvolvimento neste setor está a arrancar. O INESC TEC, no Porto, desenvolve há perto de dois anos um projeto de smart farming com produtores nacionais, como a Herdade do Esporão, em vinha, e a Herdade Maria da Guarda, em olival. A partir dos históricos de dados reunidos pelas empresas agrícolas dá o passo seguinte: projetar produções com precisão.
“A Esporão tem, ao longo do ano, um método para fazer a previsão da produção. Nós já temos um algoritmo que faz a estimativa de produção, e temos métricas que mostram que somos mais precisos. Temos ganhos de cerca de 20%”, exemplifica Carlos Ferreira, responsável pelo projeto que caminha para a internacionalização. A equipa do INESC TEC vai trabalhar com o grupo Sovena em olival em Marrocos e Argélia, e está também à procura de parceiros no Brasil.
Novos negócios estão a crescer
As consultoras são outro dos ramos do agronegócio que começa a despontar com a agricultura inteligente, fazendo a ponte entre quem desenvolve e vende a inovação e os produtores. Podem contribuir para integrar as soluções disponíveis e também para gerir dados dos históricos de produção que começam a avolumar-se à medida que os agricultores vão adotando os sistemas inteligentes – e que alguns, como João Coimbra, já começam a partilhar entre si.
“Estamos a falar de quantidades muito grandes de informação e, por regra, nas empresas já com alguma dimensão – mas ainda relativamente pequenas, com menos de dez pessoas – a parte informática é pouco evoluída porque no passado não era necessária para as operações”, explica Bruno Caldeira, da Consulai.
A nova agricultura exige competências de que os agricultores portugueses raramente precisaram: a familiaridade com o inglês, língua franca das tecnologias, e com as operações digitais. “Há pessoas que conseguem ultrapassar isso, mas a idade média dos agricultores é elevada e o nível de escolaridade baixo”, aponta Caldeira, para quem é essencial que o país se adapte. “Caso contrário, pode ser o fim de alguns negócios.”
A Agro Analytica é outra consultora de gestão agronómica apoiada nas novas tecnologias. Foi criada no início deste ano, precisamente para fazer a tradução do novo mundo da agricultura inteligente para os campos portugueses. “O nosso objetivo maior é tentar transferir conhecimento para que isto seja uma coisa terrena, que seja utilizada, e que tenha o seu retorno de capital, se não imediato, quase imediato”, explica Gustavo Caetano, um dos sócios.
A consultora não vende produtos nem serviços de terceiros. Só os seus próprios serviços de apoio à gestão. Diz no entanto que os custos das novas tecnologias – que incluem algumas plataformas gratuitas de informação geográfica ou de imagens de satélite – não são proibitivos, e podem ser acessíveis a todas as escalas.
“É possível, mesmo numa pequena parcela, utilizar este tipo de ferramentas. Tanto dá para agricultores com 200, 500, mil hectares, como para realidades de dez, 20 hectares”, defende Caetano.
A Alfaragri, agronegócio de aplicação de pesticidas por aspersão com drones, é o caso de uma empresa que trabalha com pequenos produtores. Por enquanto, só faz demonstração, mas salienta os benefícios. “A redução da contaminação dos solos é de mais de 90%”, defende Alexandre Almeida.
“Não é como o trator que tem barras de aspersão, com arrastamento. Estamos a fazer ensaios em couves e, para um área de 6500 metros quadrados gastamos 12,5 litros de água. O trator gasta 500 litros de água para a mesma quantidade de produto químico”, compara.
Mas esta aplicação técnica está ainda por regulamentar. Ricardo Regueiras, também sócio da Alfaragri, diz que é urgente atuar. “O mercado podia proteger-se pelos bons resultados que tem. Mas nunca se vai conseguir recompor porque todos têm um drone e todos fazem tudo. Não é esse o caminho que queremos”, afirma.
Para o investigador Ricardo Braga, o futuro da agricultura será determinado pela informação e não pelo hardware utilizado. “Pensar a agricultura de precisão como a aplicação de tecnologia pura e dura não é o que defendo. É menos sexy do que isso”, explica o especialista.
“A mudança de paradigma está no aumento da intensidade dos dados na tomada de decisão.”
A Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) diz que essa deve ser “a agricultura de hoje”. “Já não é saber do sol e do vento. É tecnologia, aplicação de conhecimento científico, mais previsões”, diz Luís Mira, o secretário-geral, para quem nem todos integrarão o novo mundo da agricultura, onde se iniciam já algumas das principais explorações portuguesas, nos cereais, vinha e olival. “Não há muitos Joões Coimbra no país. Mas o caminho é dos Joões Coimbra, não é por outro lado.”
*Este artigo foi originalmente publicado na edição de agosto de 2018 da revista Insider com o título ‘A agricultura inteligente é um novo campeonato’.