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Um aumento de vendas exponencial em 2020 da Airfree, na era da pandemia, levou-nos à descoberta do inspetor engenhocas português que criou um purificador diferente do habitual que usa o calor para eliminar mofo, bactérias e, eventualmente, vírus.

Carlos Matias nasceu em Lisboa há 70 anos. Este alfacinha partiu aos 17 para o Brasil com a família, em busca de novas oportunidades, daí que transpareça o sotaque açucarado brasileiro no meio do português de Portugal quando nos conta a sua história, bem mais ampla do que uma empresa de purificadores portuguesa com um conceito diferente do habitual e que, além de eficaz para mofo e ácaros, também pode ter algum tipo de eficácia com vírus como o SARS-Cov-2 (covid-19) – não que evite totalmente a sua propagação (veja a explicação mais à frente).

E como foi parar ao Brasil em 1966? “É uma longa história, mas o meu pai tinha construído uns prédios no Brasil logo após a II Guerra, como investidor e havia uma situação difícil em Portugal com as colónias, guerras e decidiu emigrar para lá”. Foram para São Paulo, que foi um grande choque pelas ruas desorganizadas e pelo sentimento de insegurança em coisas como andar no autocarro. “Foi assustador até nos habituarmos”. Estudou lá, casou com brasileiras. “Gosto do Brasil, mesmo que ande-se por lá com segurança ou carros blindados mas aí não há opção”.

“Hoje vivo das minhas invenções e de acordo com a minha mulher são muitas (risos), diz que estou sempre a magicar coisas e é verdade”. Mesmo não tendo uma oficina de engenhocas em casa, tem o seu espaço sagrado de desenho, como bom arquiteto. “A arquitetura dá-nos uma visão 3D muito boa do que nos rodeia. Sei o que vai acontecer, um movimento ou assim. E ajuda desenhar mesmo à mão em coisas mais criativas”.

O regresso a Portugal após alguns negócios criados pelas suas invenções (já lá vamos) está relacionado com o desejo de se aproximar da pátria que o viu partir 56 anos antes e com o facto de já ter um escritório em Lisboa – que era um dos seus centros que coordenava a parte administrativa dos negócios criados -, em frente que Sheraton. Isso e a oportunidade de poder criar uma empresa a partir de Portugal, a Airfree.

A ideia original nasceu da necessidade, muitos anos antes, de evitar as crises alérgicas do filho. “Tinha uma casa na praia e não podíamos ir em família à praia porque o filho era alérgico a mofo e ficava com a pele estilo galinha, já em São Paulo o problema eram os ácaros”. Comprou filtros inicialmente nos EUA, mas não ficou satisfeito.

Como nasceu a ideia do “churrasco ou chaminé” como purificador? O processo de purificador dos modelos da Airfree “é diferente do usado na indústria dos purificadores e ninguém tem nada assim”, diz. E aí o pediatra do seu filho acabou por ajudar. A ideia para o conceito (de calor) que alimenta os modelos da Airfree chegou numa visita à Alemanha em 2002. “Estava lá numa fábrica de cerâmica, por outros motivos, procurava outra coisa, quando vejo uma cerâmica com um aspeto peculiar, parecia uma chaminé e lembrei-me de como o calor sai pela chaminé e também do conceito de churrasqueira aliado ao de água fervida”.

Imagem funcionamento de um aparelho Airfree

Daí Carlos achou que podia tentar usar o calor para purificar o ar, fez um protótipo com essa cerâmica da empresa alemã e testou em Lisboa no INETI (Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação), hoje Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG). “Fizeram o teste e correu muito bem, por isso fiz um protótipo para usar em casa e fiz mais uns quantos para por noutras casas, Miami, São Paulo”. Seguiu-se a patente, em vários países incluindo Ásia, Europa, EUA e Brasil. “Não faço nada sem patente”, admite com um sorriso: “eu mesmo escrevo a sua descrição”.

Depois os amigos começaram a ver e a pedir e fez mais alguns, “um produto muito simples, até bem feio, só para desenrascar”. E depois começou mesmo a vender, usando a estrutura que já tinha dos outros negócios, “com 100 a 200 por mês, inclusive nos escritórios nos EUA”.

O crescimento do negócio

Em 2005 fizeram testes, em parceria com a Teka, em Aveiro. “Não deu muito certo, era um modelo metálico e complicado”. Além disso, Carlos também queria um modelo de vendas com royalties que eles não estavam habituados.

Em Miami, teve a ajuda de um cliente da sua empresa de contentores, que era da Tailândia, e aí começou de uma forma mais profissional a empresa. Em 2005 fizeram o design da peça, porque percebeu que havia mercado para isso especialmente nos EUA.

Começou devagar, sem pressa. “Nunca pensámos em vírus, mas sim em mofo, bolor e bactérias”. Apesar disso, este ano Carlos diz que conseguiu fazer um teste relacionado com vírus na China, onde testaram a eficácia de um purificador Airfree com o Influenza A e: “matou o vírus, correu bem”.

“Nós fazemos diferente dos outros. Usamos calor, não temos filtros, não temos ventilador e por isso não fazemos barulho. São mini chaminés. Sente-se um calorzinho quando colocamos a mão”, explica, indicando eficácia de 14 a 30 metros cúbicos por hora. “Muitos dizem que não funcionam”, admite o gestor: “às vezes até devolvem o aparelho porque acham que não funciona porque não ouvem ventoinha, mas temos inúmeros testes em Portugal, EUA e Ásia que mostram a eficácia. Alguns dos testes mais mediáticos foram feitos nas Torres Petronas, na Malásia e na Biblioteca Nacional em Portugal. “Os ácaros e o mofo caíram todos onde o purificador atuou”.

Em 2016 e 2017 foi quando começaram a crescer como empresa exportadora. “Sempre fomos uma empresa pequena e o mercado português nunca foi o nosso foco até porque é difícil muitas vezes de explicar a eficácia deste tipo de produtos, é preciso maior investimento de marketing”. Daí que a ideia sempre passou por exportar. Estão em 64 países, mas quase toda a produção vai para a Ásia e EUA, em partes quase iguais. A venda é feita ao consumidor, “até porque a venda técnica para empresas grandes ou instituições requer muita gente na área de vendas e nós temos poucas”.

Trabalham com três fábricas em Portugal: em Sintra, em Lisboa e na Marinha Grande. “E tem sido uma correria para tentar fabricar mais este ano”.

O objetivo? Chegar às 200 mil ou 300 mil unidades por ano (o dobro ou o triplo do que têm atualmente). As vendas nos EUA são feitas por um distribuidor, que acabaram de comprar – e lá os maiores clientes são o Home DepotWalmartHammacher , os grandes retalhistas. E no Brasil e Ásia é o mesmo sistema – em Portugal vendem diretamente às lojas.

O ano passado produziram em Portugal quase 100 mil purificadores e, pela primeira vez – para surpresa do próprio Carlos -, tiveram mais vendas do que o previsto, com o país a representar já quase 5% da faturação.

A marca não é vista como premium e a gama varia entre os 99 euros (purificador mais pequeno) e os 499 euros para salas maiores. Vão lançar em breve um modelo com ventiladores, para partículas e para cheiros – que curiosamente não é recomendado pelo gestor para a questão das bactérias e vírus (pelo fluxo de ar que cria) – embora “o aparelho nunca vai captar a 100% nem dá garantia nenhuma”, mas ,”o que passar por lá será destruído, de batérias, mofo ou vírus”.

A chuva de pedidos não tem parado. “Foi uma explosão, não sabemos o que fazer mais”. Tanto na China (onde ofereceram a um hospital da zona que os serve de circuitos eletrónicos mais de 180 unidades), como de Portugal. O site que tinham permitia vendas online, mas tiveram de as parar por completo na venda direta. “Não temos estrutura para vender assim diretamente ao público”, diz, após mais de 100 a 200 pedidos por dia no site.

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Opinião de virologista: “purificadores não travam propagação”

De acordo com Pedro Simas, virologista do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, os purificadores como este da Airfree podem ser eficazes com vírus num contexto específico como um hospital ou uma zona de quarentena, mas não evitam a sua propagação. “Pode-se purificar o ar dentro de uma sala mesmo pelo calor, mas se alguém tossir o vírus pode contagiar outra pessoa na mesma, não evita isso e é importante ninguém comprar purificadores a pensar que, assim, vai evitar o contágio”.

O chamado spray de gotículas que podem conter coronavírus tem vários tamanhos e pode ser tão pequeno que fica em suspensão no ar algumas horas. Carlos admite que as gotículas de maior tamanho que passam de uma pessoa para a outra ou caem rapidamente nas superfícies e contamina-as, “aí o purificador não faz nada”. “Mas as gotículas mais pequenas que ficam em suspensão no ar podem ser em muito reduzidas pelo nosso sistema”, indica, mesmo admitindo que “é impossível garantir que se vai captar todas ou evitar a propagação”.

“Os chineses acham que é mesmo útil e que sistemas destes podem ser uma ajuda com as micropartículas que ficam no ar”. Carlos resume da seguinte forma: “Nós fazemos uma espécie de churrasco de mofo, ácaros e afins, quando menor a partícula é, mais facilmente é destruída no nosso sistema”.

Resumo dos produtos

Linha P é pensada para espaços entre os 16 m2 até 60 m2 (depende do aparelho), isto em condições normais, numa casa, com cinco ou seis pessoas e “nunca a pensar em vírus, porque são produtos desenhados para mofo e bactérias”. Depois de se começar a usar, o mofo pode acabar naquela divisão em duas semanas, promete. “Pode-se deixar uma banana um mês, que não cria bolor, mesmo ficando preto, nem se verá mais (dependendo do uso) bolor nas paredes, porque matamos os esporos ou fungos que vão formar as colónias”.

Atualmente estão a terminar o desenvolvimento para a Coreia do Sul de purificadores para elevadores, “mas aí o sistema vai aspira para cima o ar que as pessoas respiram e depois é purificado com o tal sistema – churrasqueira – de calor”. “É uma maneira que encontrámos de proteger os elevador e fala-se, claro, agora muito do covid-19, mas o Influenza A e B mata milhares na Ásia e é uma preocupação por lá há vários anos”.

Airfree coronavirus
Airfree

Tipo de uso de purificadores na era do isolamento

Com tanta gente a passar dias inteiros isolado em casa com a família nesta altura, Carlos admite que os purificadores são ajuda nesse contexto. “Deve-se ter purificadores onde se está mais tempo: no quarto, por exemplo, e para evitar a contaminação cruzada, ter um na sala”. O que garantem? “Que se elimina o bolor com um uso regular, tal como os ácaros e as bactérias caem”. Os ácaros são uma fonte de alergias respiratórias muito frequentes “e é importante poder eliminá-los”.

“O problema não é só o pó vindo da rua, o problema é o que se cria em casas fechadas”. Daí que o inventor admita que o maior ‘aliado’ das empresas de purificadores (para haver necessidade de os usar) é fechar as janelas de casa e ligar o ar condicionado, “porque a partir do momento em que não existe troca de ar, todos os microorganismos ficam ‘contentes’, os ácaros ficam felicíssimos, o mofo aumenta”. Ou seja, abrir as janelas é também uma boa forma de evitar esses ‘males’ mesmo sem purificadores. “Quando tive um escritório em Nova Orleães vi fecharam o prédio do FBI por causa de mofo – que é algo que até pode causar cancro e lá é uma preocupação que aqui, em Portugal, não existe.

Uma oferta ao Santa Maria recusada

O inventor conta-nos ainda uma história passada há mais de 10 anos, quando a sua mãe, que vivia em Lisboa, foi tratada no Hospital Santa Maria. “Foi bem atendida e eu quis oferecer purificadores para colocarem no andar das alergias, um por gabinete e por consultório, mas não quiseram”. A explicação surgiu depois, já que a maioria das doações eram recusadas para evitarem gastar dinheiro com manutenção, mas: “o nosso purificador não tem manutenção porque não há filtro para trocar, por isso, foi pena”.

As primeiras invenções? Contentores & café

Voltando um pouco atrás na história do arquiteto, inventor e gestor Carlos Matias, podemos ficar a conhecer as suas primeiras invenções que se tornaram num modo de vida. Os negócios levaram a que hoje, com 70 anos, divida a sua vida por Miami, onde vive um a dois meses por ano, passa quatro meses em Lisboa e o resto do ano no Brasil, entre São Paulo e a casa de praia.

As invenções começaram ainda jovem em São Paulo. O sucesso só chegou já na casa dos 20 anos, quando começou a implementar sistemas originais e protegidos por patente para transportar café. “Nessa altura [anos 1980] tinha terminais de contentores em cinco países e tinha contentores por aluguer”.

Tudo começou com uma ideia nos anos 1970. “Levei para o Brasil um tipo de contentores especiais, mas precisava de carga para eles”. Por isso pensou em testar com o café, “que dava para por as sacas lá dentro”, isto em São Paulo. “Explicaram-me que já tinham tentado transportar assim café mas não funcionava porque, após passar o Equador, a humidade do café condensa, molha e fermenta tudo”.

A solução? Testou um “papel mata-borrão por cima dos sacos” e fez uma experiência para a Lavazza, empresa de café que o seu pai já conhecia “e funcionou!” “Criei um negócio a partir dessa ideia em 1980”. A empresa mantinha “quatro estações de carregamento de café para dentro desses contentores no Brasil, duas no Equador, duas na Colômbia e uma no México”, sempre com a tal técnica que conseguiu usar representando “os grandes exportadores de café”. “Era o senhor café, nessa altura”, admite.

Segunda invenção: saco de juta gigante

Nos anos 1990 foi altura “de mudar de negócio”. Surgiram outras empresas a competir e Carlos admite: “não gosto muito de concorrência”. Por isso partiu para novas ideias de invenções com o objetivo de criar outro negócio. O café, até ali, era transportado em sacos de juta ou sarapilheira. “Aquilo era um problema para atirar para fora, custava dinheiro”. Daí que testou fazer um carregamento para um contentor do café a granel, “ou melhor, usando um saco do tamanho do contentor inteiro”, para onde despejou o café, “de novo com ajuda do papel mata-borrão”. “Montei uma armação de madeira e fiz uma experiência com este sistema para a americana General Foods”.

Com a invenção também veio uma máquina pensada “para carregar o contentor a granel”, bem como “um colchão de ar que ia no contentor para garantir que dava tudo certo”. A vantagem era grande, garante. Em vez de por o café em dezenas de sacos pequenos no contentor, agora podia-se por lá tudo de só uma vez e, “em vez de ter 16 toneladas, passou-se a ter 22 toneladas num contentor, pelo mesmo preço”. Os custos de eficácia com “zero de danos” fizeram da invenção o novo ganha pão. “O projeto cresceu e hoje já só recebo os royalties da ideia”, já que ficou com a patente do tal saco para contentores.

Em 2005 ainda tinha este negócio, que também incluía silos ou elevadores de granel de café em Nova Orleães, nos Estados Unidos para o mesmo processo, numa sociedade em que um italiano acabou por enganá-lo. “Tirei umas férias muito longas que não devia ter tirado”, lamenta. Deixou esse negócio e em 2000 começou mesmo a vender as empresas que tinha no Brasil, “desanimado com a situação no país”. “O Brasil é um país difícil de fazer negócios para quem trabalha de forma justa, pela lei, já que o custo de cumprir os impostos todos e gerir a burocracia é enorme”, adianta.

Daí, como já vimos, passou para os purificadores.

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