Tecnologia alimenta era do trabalho e vida remota em tempo de Covid-19

    Ilustração: Mónica Monteiro

    Vaga desencadeada pelo surto do coronavírus Covid-19 está a exponenciar negócios, reduzir emissões e deverá massificar o trabalho remoto, mas há cuidados importantes a ter. Conferências, ensino e saúde já podem ser remotas. Nada será como dantes, inclusive em Portugal.

    O que é que a qualidade de vida, a crise ambiental, os problemas de mobilidade nas cidades ou a crise dos preços na habitação (Lisboa e Porto incluídas), têm a ver com os problemas criados com o coronavírus? “Envolvem o mesmo tipo de tecnologia e de soluções para um trabalho e vida remota que podem criar efeitos duradouros”, diz-nos Francisco Jerónimo, analista principal da consultora IDC. Certo é que estudos recentes mostram que se pode poupar 22 dias por ano nas viagens para o escritório, reduzir 80% dos gastos em espaço de escritório e as reduções de viagens na China com o surto Covid-19 fizeram as emissões de carbono para a atmosfera cair 25%.

    Em Portugal há já escolas fechadas por precaução e a Direção-Geral de Saúde e o governo recomendam o teletrabalho e que se evite encher os hospitais (é preferível usar a Linha SNS24). A nível global existem milhões de pessoas em quarentena e a tecnologia será fundamental para facilitar esta vida em casa que empresas como a Xerox Portugal, Worten ou Farfetch já permitem aos funcionários.

    Não é, assim, surpreendente que as ações em bolsa de empresas com soluções online para o teletrabalho como Zoom (para videoconferências) ou Slack (comunicação entre equipas) estejam a crescer vertiginosamente. Mas não é só no teletrabalho. As pessoas vão ficar mais em casa daí que a Amazon (encomendas online) e a Netflix (streaming vídeo) cresçam em bolsa – a Netflix subiu 18,6% esta semana.

    Gonçalo Hall é um dos organizadores da conferência Nómada Digital (a 14 de abril) e consultor nesta área de trabalho remoto. Está a trabalhar com três empresas nacionais neste momento e diz-nos que tem tido um grande aumento na procura, “mas mais a nível internacional, da Alemanha, a Itália e EUA”. “Em Portugal sinto que as empresas ainda não têm noção que poderão ter de fechar os escritórios”, admite. Um dos maiores problemas no país “é a comunicação”, já que várias empresas têm processos baseados mais na oralidade e no email, com poucos processos online”.

    Há muitas ferramentas para o teletrabalho mas torna-se “fundamental ter softwares menos óbvios como o Asana ou o Trello para definir tarefas, deadlines e responsáveis por cada tarefa”, diz. Hall adianta que o processo feito nas empresas para implementar o teletrabalho é de 4 a 6 semanas, “mas pode ser feito em 3 dias ou até 24h em caso de emergência”.

    Pedro Moura, responsável da startup portuguesa Landing Jobs – plataforma de recrutamento online – admite que o trabalho remote friendly é uma tendência que se vai solidificar agora. Um estudo da empresa revela:“80%dos profissionais de tecnologias de informação em Portugal estão preparados e desejam essa solução”.

    Teletrabalho no interior

    June Bolneo nasceu nas Filipinas há 36 anos e vive em Portugal há quatro. “Apaixonei-me por Lisboa e decidi viver aqui”, admite. Criou uma empresa de marketing digital sediada em Nova Iorque e é isso que lhe paga as contas. Mas o seu principal trabalho é na Grow Remote, uma ONG irlandesa que tenta expandir o trabalho remoto para zonas rurais.

    No início deste ano June começou a fazer workshops em Aveiro e Évora – segue-se Ericeira e Vila Nova de Milfontes. O objetivo? Ensinar a melhor forma de fazer trabalho remoto e colocar portugueses em contacto com empresas internacionais. Neste momento estão a ajudar empresas e municípios portugueses a criarem projetos piloto de trabalho remoto e a treinar os funcionários. Adepta do teletrabalho e da qualidade de vida que permite, June quer fazer dele a norma.

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    Zuckerberg acredita na realidade virtual

    O que parece ainda pouco realista para o teletrabalho é a realidade virtual (RV) ou aumentada (RA). O líder do Facebook, Mark Zuckerberg (que comprou em 2014, por 2,3 mil milhões de dólares a startup de realidade virtual Oculus VR), voltou a frisar no início de janeiro que os próximos 10 anos serão marcados pelo teletrabalho.

    “A tecnologia de RV ou RA vai dar-nos a sensação de estarmos noutro local de forma convincente, a telepresença”, o que Zuckerberg espera que alivie a crise de habitação dos grandes centros, mesmo que admita que os aparelhos ainda não estão ‘no ponto’ (várias previsões do CEO do Facebook na explosão destes aparelhos têm falhado, pelo menos no timing). “A tecnologia de realidade virtual e aumentada ainda não está pronta para fazer a diferença porque faltam melhores aparelhos e falta uma integração com as soluções típicas de teletrabalho como as da Microsoft ou Google”, explica Francisco Jerónimo, mesmo que admita que as vendas “continuem a crescer a dois dígitos por ano”.

    Este português que lidera a área de aparelhos móveis do IDC a partir de Londres acredita que o coronavírus vai “iniciar uma vaga de trabalho remoto que veio para ficar” porque “a maioria das empresas vai perceber que poupa dinheiro e cativa funcionários”. “Certo é que o contacto virtual nunca vai substituir o contacto pessoal”, admite.

    Opinião semelhante tem a investigadora na relação trabalho-família e professora de psicologia na Universidade de Lisboa, Maria José Chambel, que indica que “o trabalho remoto não é para todos”, já que “há quem se sinta demasiado isolado”. Gonçalo Hall diz mesmo que, se não houver cuidado, “pode haver excesso de trabalho em casa” ou a mistura indesejada entre vida pessoal e trabalho. A formação pode ser importante para criar hábitos adequados, do vestir de manhã até aos tempos de trabalho e pausas. O isolamento “combate-se com mais vida social.”

    Chambel lembra que há empresas que fornecem cadeiras e secretárias, o que ajuda o colaborador a ter um espaço próprio para trabalhar em casa e separar mentalmente trabalho e vida pessoal. Pedro Moura adverte que enquanto as empresas devem apostar na “autonomia e responsabilização”, os colaboradores devem evitar cair na “anomia profissional”. “Há um grande potencial inclusive nos portugueses fazerem trabalho remoto para fora”, admite Moura.

    Nas dificuldades mais práticas no trabalho a partir de casa estão a velocidade da internet – se houver alguém a usar Netflix em casa as videoconferências podem ficar comprometidas – e a segurança. David Emm, especialista da Kaspersky – empresa de cibersegurança – indica-nos que além de fornecer uma VPN (rede privada virtual para que as equipas se liguem com segurança à rede corporativa) – algo que a Xerox Portugal já fornece -, as empresas devem dar telemóveis e portáteis com software de segurança e tentar tornar as redes Wi-Fi seguras. “As redes 4G representam menos riscos do que uma rede Wi-Fi pública”, alerta.

    Em resumo, a tecnologia – e com o 5G só irá melhorar – já permite um estilo de vida remoto como nunca houve e o surto que está a assolar (e parar) vários países pode ser o pontapé de saída para generalizar o que alguns já faziam.

    Paddy Cosgrav, fundador da Web Summit. Foto: Filipe Amorim/Global Imagens
    Paddy Cosgrav, fundador da Web Summit. Foto: Filipe Amorim/Global Imagens

    Serviços remotos. Das consultas às conferências

    —Saúde. Consultas remotas.

    No domínio da saúde há empresas focadas em consultas remotas que estão a ter “um aumento exponencial de pedidos”, diz-nos Ed Sykes, responsável da startup de saúde Babylon Health. A empresa trabalha há já algum tempo com serviços nacionais de saúde de Reino Unido, Canadá e Ruanda fornecendo “um ecossistema de saúde” de consultas por videoconferência (antes um chatbot de inteligência artificial faz a triagem e deixa dicas), fornecimento de medicamentos e de testes de sangue em casa. Tudo através de uma app, “o que ajuda a evitar espalhar a doença entre pacientes (e no pessoal médico) num centro hospitalar”.

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    —Conferências (ensino e julgamentos) online. Web Summit nesse caminho

    As conferência online não são uma novidade, mas este ano terão de ser a regra. A Web Summit cancelou ontem a Collision, no Canadá, indicando que vai fazer tudo online. Paddy Cosgrave diz que está preparado e no final de fevereiro investiram num startup de conferências remotas, a Hopin. “O software será chave nesta explosão de conferências online”, admite.

    A nível de ensino, embora existem já inúmeros plataformas de cursos online inclusive nas universidades será mais difícil será expandir rapidamente essas soluções (algumas como a 360Learning estão já a sentir aumento na procura) para as centenas de escolas ‘tradicionais’ já fechadas na Europa. No entanto, há universidades mais preparadas a enveredar por esse caminho, como é o caso de Stanford, na Califórnia (anúncio feito este sábado).

    As missas também podem ser feitas por vídeo e transmitidas online.

    Dentro do mesmo espectro, os julgamentos por videoconferência já se praticam, embora de forma limitada e podem ser expandidos devido a esta crise.

    —Ginásio em casa. Peloton.

    Os ginásios ainda vivem muito da presença física, mas soluções de aparelhos caseiros como as da startup tecnológica Peloton – que tem bicicletas estáticas, entre outros produtos associados a apps e serviços online – estão a ganhar tração.

    —Museus. Futebol. Concertos.

    As ferramentas para vermos monumentos ou mesmo museus inteiros online e até de forma virtual já existem – a Google lidera. A realidade virtual aliada ao futebol – a Samsung fez já alguns testes em Portugal dando a perspetiva de quem está no banco de suplentes ou em algumas zonas das bancadas – e aos concertos pode ter novo fôlego.

    —Compras e refeições online.

    As encomendas online ganham maior preponderância nesta altura – a Amazon cresce em bolsa. O mesmo acontece com o serviço de entregas ao domicílio de Continente, Auchan ou Mercadão e refeições ao domicílio como a Uber Eats – curiosamente, em sentido contrário serviços de ride hailing ao estilo Uber estão a ter problemas não só de clientes mas também de receios no contágio dos condutores.

    Existem já empresas de entrega de refeições a adaptar os seus serviços para entregas em contacto humano – Non Contact Deliveries -, como a americana Postmates.

    Empresas que fornecem kits de emergência ou sobrevivência como a empresa californiana Preppi também podem ser úteis e ter ganhos consideráveis nesta altura. O mesmo se vê em aparelhos como purificadores de ar – mesmo que vários não tenham capacidade de travar os vírus e, em relação ao Covid-19, ainda não há confirmação que mesmo aqueles que têm sejam eficazes com este vírus em particular.

    —Serviços de streaming

    A Netflix tem crescido em bolsa à boleia do surto do coronavírus deixar mais pessoas (e mais tempo) em casa. O analista Dan Salmon, da BMO Capital Market, explicou à Variety que as pessoas vão ter de encontrar novas formas de passar o tempo e isso potencia alguns negócios, com a Netflix a ser o mais óbvio dentro do streaming de vídeo (onde também estão a HBO, Disney, Amazon, Hulu, entre outros).

    O mesmo acontece com serviços de streaming de música como o Spotify. Em sentido contrário as receitas de bilheteiras na industria do cinema pode estar à beira de uma crise profunda. O mercado chinês (o maior a nível mundial) perdeu 230 milhões de dólares devido ao surto e o novo filme de James Bond foi adiado para setembro para evitar uma hecatombe nas receitas.

    Por culpa do streaming, a televisão já não é o que era

    Notícias da semana sobre o tema

    – Itália fecha escolas e universidades em todo o país

    – Governo pede a serviços para privilegiarem o teletrabalho

    – Menos viagens e trabalho remoto. Grandes cotadas preparam-se

    – Google, Twitter e Microsoft exigem teletrabalho aos funcionários

    – Covid-19 isola cidades, fecha escolas e empresas na Europa

    – Google e Facebook cancelam os seus eventos anuais

    – Cerca de 120 escolas estão encerradas em França

    – Das missas ao futebol, eventos em todo o mundo estão a ser cancelados

    – Novo filme de James Bond adiado para novembro devido ao coronavírus

    – Covid-19: Governo pode encerrar cantinas escolares

    – DGS recomenda a empresas que evitem reuniões e apostem no teletrabalho

    – Bancos preparam trading fora do escritório em resposta ao vírus

    – Ações da Peloton (ginásio em casa) sobem devido à epidemia

    – Nómada Digital: Esta conferência é totalmente online e em português

    – Venda de livros de Saramago aumenta quase 10 vezes

    – Portugal já começou a emitir vistos em formato eletrónico

    – Países com menos carga horária são os que têm maior produtividade

    Óculos, o principal periférico do corpo tem uma palavra holográfica a dizer