Luso-britânica Farfetch quase duplicou receitas, superou previsões e disparou em bolsa. Explicamos porque os prejuízos não preocupam a tecnológica de José Neves e outros gigantes tecnológicos e o que distingue a plataforma especialista em luxo que vale mais de dois mil milhões de dólares.
Depois de um verão conturbado com acusações que ainda podem prejudicar a marca, a luso-britânica Farfetch – e o primeiro unicórnio nacional (por ter valor de mercado acima dos mil milhões de dólares) – brilhou na abertura da bolsa de Wall Street ao chegar perto do 30% mesmo depois de ter apresentado prejuízos.
O motivo? Os resultados apresentados. A plataforma portuguesa de comércio online de produtos e marcas de luxo apresentou uma receita de 255,5 milhões de dólares no terceiro trimestre do ano, um crescimento homólogo de 90%, o que agradou aos investidores apesar dos 85,5 milhões de dólares de prejuízos (mais 10,6% do que no anterior).
Em agosto a Farfetch chegou a perder mais de 44% do seu valor em bolsa num só dia por resultados preocupantes para os investidores após o anúncio da aquisição do New Guards Group (plataforma que ajuda designers e marcar em início de carreira) por 675 milhões de dólares. E, em setembro, foi anunciado que iria iniciar-se um processo contra a empresa alegando informações falsas prestadas aos investidores que poderiam complicar rentabilidades futuras.
Apesar de estar longe dos valores anteriores a agosto – em março cada título chegou a ser negociado a 31,5 dólares -, a Farfetch, com estes resultados mais recentes, parece estar a reconquistar a confiança dos investidores.
A empresa de José Neves disparou em bolsa esta sexta-feira avançando 29,5%, para os 9,70 dólares por ação, naquele que foi também um dia de recordes na bolsa de Nova Iorque, com os índices de referência S&P 500 e Dow Jones a atingir máximos na abertura da sessão (para isso ajudaram os indicadores de que as negociações entre a China e o EUA podem chegar a bom porto).
Tecnológicas: primeiro crescimento (e prejuízos), só depois o lucro
O gestor português adiantou em entrevistas recentes que está focado no crescimento e não no lucro para o futuro imediato da empresa e que, se esse não fosse o foco, até podia ter apresentado já lucros. Neves aponta em entrevista ao Económico o ano de 2021 como a meta mais provável para que a Farfetch passe a ser rentável, o mesmo cenário indicado por alguns analistas.
Sobre os resultados apresentados ontem, José Neves congratulou-se com o “progresso contínuo na criação da plataforma global para o luxo”, apelidando o terceiro trimestre como “fantástico” e “acima das expectativas” graças a um aumento de quota de mercado a “ritmo acelerado”. A Farfetch apresentou ainda 1,9 milhões de consumidores ativos nos últimos 12 meses que mostram como a empresa “está firmemente estabelecida como a principal player online no mercado dos produtos de luxo”.
A subida de 90% nas receitas para 255,5 milhões de dólares está a par com a subida de 59% no valor bruto das mercadorias transacionadas (o valor dos produtos vendidos na plataforma), que é agora de 492 milhões (a projeção era de 30 a 35% em crescimento).
Os prejuízos não são nada de novo para empresas tecnológicas. Jeff Bezos tornou-se famoso nos primeiros anos da Amazon por admitir que não queria saber dos lucros, queria era crescer. São conhecidas as cartas aos investidores de Bezos a indicar que ele não está focado em lucros a curto prazo, mas sim nos consumidores e no crescimento. A agora gigante Amazon, fundada em 1994, apresentou pela primeira vez um trimestre com lucros em 2001 e só em 2003 teve um ano lucrativo. O Facebook, fundado em 2004, teve lucros pela primeira vez em 2009.
Mas tecnológicas mais recentes ainda estão em busca do seu caminho. Existem dúvidas, por exemplo, sobre se a gigante da mobilidade Uber alguma vez vai chegar aos lucros – a empresa tem diversificado o seu negócio para outras áreas, como a financeira, como resposta. A Uber teve um recorde de 5 mil milhões de prejuízos o ano passado e tem caído em bolsa, embora ainda tenha um valor de mercado a rondar os 50 mil milhões de dólares – o seu IPO o ano passado avaliava a empresa nos 90 mil milhões.
Outras empresas disruptivas como a Revolut, fundada em 2015, apresentou no último trimestre prejuízos de 41 milhões de dólares (o dobro do trimestre anterior), mas tem registos de crescimento (inclusive em Portugal, onde já superou os 300 mil clientes) impressionantes.
Alguns analistas indicam que alguns dos IPO problemáticos recentes em unicórnios com avaliações muito elevadas (como Uber, Lyft e Peloton) que descem depois a pique pode, inclusive, levar a algo semelhante à Bolha da Internet de 2000 – que levou inúmeras empresas com negócios baseados na internet à falência.
O caso problemático mais recente é o da WeWork, rede mundial de espaços de cowork, com um processo de entrada em bolsa caótico e que tem levado a uma desvalorização repentina da empresa, a despedimentos e à saída do seu CEO – o investidor SoftBank Vision Fund já perdeu vários mil milhões no processo. A empresa que chegou, há uns meses, a ser avaliada em 47 mil milhões de dólares deve entrar em bolsa só em 2020 e por um valor abaixo dos 10 mil milhões.
E o que é a Farfetch?
A maioria dos portugueses nunca comprou nada na Farfetch, que é como quem diz no site de e-commerce de moda de luxo da empresa e a sua face mais visível, onde já estão duas mil marcas representadas. A empresa emprega mais de 1500 pessoas em Portugal (mais de três mil a nível mundial) e tem por cá o seu centro técnico e tecnológico – prepara-se para abrir novo escritório em Matosinhos, num investimento de 15 milhões de euros.
Numa reportagem que fizemos com a empresa o ano passado pudemos perceber o que é a empresa na atualidade e aquilo em que se quer tornar.
Na altura, Cipriano Sousa, o CTO, explicava-nos que a Farfetch não estava só a mudar a forma como se compra moda de luxo no mundo, mas quer ser uma plataforma global da venda de moda em geral. O primeiro engenheiro da empresa (ainda antes dela ser oficial), em 2008 na altura indicava: “em 10 anos podemos ser o sistema operativo da moda em geral, em que os parceiros, marcas e boutiques usam a Farfetch como as apps usam a Apple e o iOS do iPhone para crescer”.
Ou seja, a plataforma quer resolver o problema de várias empresas quando querem crescer e vender para outras áreas do mundo, fornecendo o backoffice, pagamentos, o processamento de encomendas e envios e até o seu departamento de fraude. Neste momento 95% do negócio da Farfetch é o e-commerce da moda de luxo e 5% é o uso da plataforma por outras empresas. “Numa década acho que vai ser ao contrário, só 5% do negócio é que será da nossa loja online”. Uma ambição notável “à medida de José Neves”.
Cipriano Sousa resumia: “não somos um site de e-commerce, somos uma plataforma com muitas aplicações em backoffice, uma rede de parceiros e uma base de dados e de data science impressionante”. E o que é isso significa? Está relacionado com a visão de ter uma “empresa global, que existe na mente de José Neves desde o primeiro dia e está enraizado na cultura”, diz Cipriano Sousa.
O CTO da empresa admitia que é na ligação entre o online e o offline (as lojas físicas ou boutiques) em que se distinguem. “Fomos nós que iniciámos esse movimento que agora é copiado”. O responsável dá o exemplo da China. “Um dos nossos trunfos é fazermos bem a ligação do global com o local, ao contrário de Amazon e outros. Temos feito isso na China, onde temos um escritório a pensar nesse mercado”. Cipriano garante que a experiência nas lojas pode melhorar muito e tornar-se muito semelhante ao que já há nos sites de e-commerce. E lembra: “só 10% da moda a nível mundial é vendida online”.
E o que é que essa ligação significa? “O cliente pode comprar online, mas levantar as compras na boutique mais próxima”, ou ir à boutique experimentar e receber em casa. “É indiferente se o processo começa online ou em loja, o que queremos é dar uma experiência fácil e prática”, explicava-nos em julho do ano passado o CTO da empresa.
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