O responsável das políticas da Wikimédia, a fundação que gere a Wikipédia, Jan Gerlach, explica-nos porque a enciclopédia online está contra a nova diretiva de direitos de autor europeia, que se vai tornar numa forma de censura e “gelar o discurso livre”.
A internet é um lugar estranho, de possibilidades infinitas. Uma espécie de nova dimensão que abriu ao mundo novas e inéditas hipóteses de comunicar e de partilhar conhecimento entre os seres humanos. A World Wide Web, que celebra esta semana os seus 30 anos – foi há três décadas que Tim Berners-Lee apresentou o projeto que viria a tornar-se na Web que conhecemos hoje – está, atualmente, com problemas e muitos dizem mesmo que está estragada.
Jan Gerlach é um advogado americano-suíço, responsável pelo área de políticas públicas da Fundação Wikimédia, sediada em São Francisco (EUA). Em conversa com a Insider, Gerlach admite que se vive uma época entusiasmante na Wikipédia e admite estar num emprego de sonho, “um trabalho gratificante”. Sobre a maior enciclopédia do mundo, explica: “somos o sítio onde ir para conhecimento gratuito na internet e com os novos serviços de assistentes digitais (popularizados com as chamadas colunas inteligentes como Alexa e Google Home) vamos levar conhecimento a mais pessoas e de forma mais diversa”. É neste contexto que também admite que a internet “atravessa alguns desafios difíceis hoje em dia”.
Diretiva europeia com lado bom e lado mau
O fundador da Wikimédia, Jimmy Wales, foi uma das primeiras vozes a manifestar-se, o ano passado, contra algumas normas da nova diretiva europeia dos direitos de autor. Na altura a Wikipédia ainda não era uma exceção ao artigo 13, por ser uma enciclopédia, algo que já acontece hoje. Daí perguntarmos a Gerlach, a posição de Wales e da Wikipédia mudou relativamente à diretiva? “Não mudou, porque embora não nos afete diretamente, o artigo 13 (e o 11 também) limitam a liberdade na internet, daí estamos totalmente contra”.
Gerlach explica, depois, como tem havido alterações positivas à diretiva, que até tem “muitas partes importantes e que fazem sentido”. Quais são?
- “Há um novo direito para Prospeção de Texto e Dados (TDM), o que é muito positivo, porque permite a todos, incluindo a comunidade científica, fazer pesquisa usando meios automáticos, computadores, e há uma boa e nova exceção para trabalhos não comerciais, que vai trazer muitos mais conteúdos relevantes à internet”.
- “Há também uma importante salvaguarda para se poder usar o que é do domínio público, presente no Artigo 10b”. A alteração torna possível reproduções digitais de obras que estão no domínio público, que podem ser usados e reutilizadas na internet. Basicamente evita que se criem novos direitos exclusivos para obras que já estavam no domínio público só porque eram agora usadas na internet. “Apenas por serem digitalizadas podiam passar a ter novos direitos exclusivos associados”, indica.
Essa liberdade de uso de obras antigas é algo “muito importante” para a Fundação Wikimédia. “Acreditamos que aquilo que já está no domínio público deve-se manter dessa forma, não deve haver uma nova privatização do conteúdo só porque há uma digitalização das obras”. Esse foi um foco importante pelo qual a fundação lutou, em negociações com as autoridades europeias.
O lado negro da diretiva
O que desilude à organização sem fins lucrativos que tenta tornar o conhecimento o mais acessível possível são os artigos 11 e 13. “Especialmente o artigo 13 terá um efeito muito negativo em toda a internet, como um ecossistema, e irá limitar a liberdade na internet”.
O responsável da políticas públicas da Wikimédia indica que, apesar da Wikipédia estar fora da responsabilidade legal que o Artigo 13 imputa à plataformas, por ser uma enciclopédia, o serviço será profundamente afetado pelo tal artigo. “A Wikipédia não vive no vazio, existe na internet e só existe por causa da internet e a informação que lá está não cresce sozinha, vem de outros locais”. Daí que, quando encontram restrições na possibilidade partilhar, de encontrar, de procurar informação, então, “inevitavelmente a Wikipédia também irá sofrer”.
A piorar esta situação que preocupa “e muito” a fundação, está o Artigo 11, que “traz outras limitações na capacidade de procurar e encontrar notícias online”. Resultado? Ambos os artigos “obrigam a fundação a opor-se por completo a toda a diretiva”. “Vão magoar a internet como um todo e a experiência dos utilizadores”, naqueles que serão efeitos que “não sendo imediatos, vão acontecer”.
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Responsabilidade legal gela discurso livre
Gerlach explica que é a responsabilidade legal de conteúdos com direitos de autor imputada agora de forma imediata às plataformas e serviços de partilha de conteúdos que vai criar uma espécie de “censura prévia problemática na internet”. “Vai requerer que plataformas como YouTube, Facebook, entre outras, tentam ter autorizações e licenciamento de alguns conteúdos, mas depois vão ter de garantir que não têm certos trabalhos e obras disponíveis sob pena de serem processados”.
Ou seja, embora o texto atual não mencione a obrigatoriedade de filtros de upload, “a lei vai levar de forma indireta a que eles sejam a norma”. Numa altura em que a capacidade de computação é cada vez melhor, o acesso à internet com cada vez mais qualidade e fácil, “há cada vez maior procura de conteúdos online por cada vez mais pessoas”. E a única forma de lidar com o Artigo 13 para as plataformas será criar filtros de upload automáticos:
“o que nos leva para um terreno pantanoso já que pode depois isso pode ser usado para outras limitações além dos direitos de autor, como remover discurso com o qual alguém poderoso não concorda”.
Mesmo o regulamento recente da União Europeia sobre conteúdos terroristas que irá remover discurso de ódio ou incitamento à violência, para o responsável da Wikimédia, “leva a uma forma de censura que não devemos apoiar”.
A Wikipédia funciona de forma colaborativa e os processos colaborativos para pessoas na internet requerem que se trabalhe em conjunto em tempo real. Daí que Jan indique que “o controlo em tempo real dos conteúdos feito por máquinas, os filtros de upload, também vão interferir com os projetos colaborativos como o nosso”.
Plataformas como o YouTube já usam filtros, neste caso chamado Content ID e “tem sido bem documentado que têm havido problemas com bloqueios em excesso e falsos positivos frequentes”. “Há tantas exceções e limitações às regras, daí que o contexto importe muito”. Com o Artigo 13, estas limitações e bloqueios serão “muito piores e vão complicar as partilhas em geral”, daí que Gerlach garante: “isto vai gelar o discurso livre e criar um ambiente pouco produtivo para aceder ao conhecimento”.
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Relação com União Europeia
A forma como a Wikimédia participa nas políticas públicas é, acima de tudo, através das suas comunidades, explica o responsável. Na União Europeia existem membros locais da comunidade da Wikimédia, “que são independentes da fundação”. “São eles que falam com os seus governos e explicam o que pensam das mudanças e porque estão contra elas, embora exista comunicação direta connosco”. Neste momento existe mesmo um grupo de membros da comunidade em Bruxelas, “que têm estado a falar com a UE sobre o que pensamos sobre isto”.
Parceria com Google para chegar a mais línguas
Com 250 mil editores da Wikipédia ativos por mês, a Wikimédia recebeu recentemente um donativo da Google, bem como tecnologia de machine learning, para ajudar a enciclopédia aumentar os seus conteúdos em várias línguas.
“Vamos poder servir novas áreas e novas regiões do globo, com conteúdo local relevante escrito por pessoas nessas regiões”, explica Jan Gearlach que, no entanto, não faz parte desse projeto na fundação.
Para comunidades que não estão nas línguas mais faladas no mundo, como o inglês, espanhol ou português, “encontrar conteúdo na internet na sua língua pode ser um problema”. “Queremos que estas pessoas descubram com facilidade conhecimento, conteúdo educacional sobre o seu mundo e a sua zona, na sua língua e a parceria com o Google tem a ver com isso”.
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