Vacina e indústria em tempos de crise sanitária: um modelo humanamente paradoxal

«O ecossistema de desenvolvimento de vacinas não funciona e carece de reforma» afirmou recentemente, à NBC News, Peter Hotez, Co-Director do Centro de Desenvolvimento de Vacinas, Texas Children’s Hospital e Reitor da Escola Nacional de Medicina Tropical, Baylor College of Medicine, em Houston.

E forneceu um exemplo concreto. O referido Centro colaborou activamente no desenvolvimento de uma vacina contra uma estirpe mortífera do coronavírus, conhecida como SARS. Tendo sido testada em animais, a vacina tinha de ser, subsequentemente, testada em humanos. Mas para esse efeito o projecto carecia de financiamento, financiamento esse que não emergiu uma vez que, tendo passado uma década desde o assustador aparecimento do SARS, o interesse na vacina havia desparecido. Resultado: a vacina foi enfiada no congelador.

Convém reflectir, pois a resposta global actual em face do coronavírus mais não faz que acentuar as falhas do actual modelo de criação de vacinas, modelo esse que é reactivo e não proactivo. Isto é, a actividade relevante surge não antes da pandemia, mas quando a mesma se manifesta, o que é humanamente paradoxal.

Com efeito, as vacinas levam anos a ser devidamente criadas, testadas (em animais e depois em humanos), aprovadas por quem de direito, fabricadas em quantidades massivas e distribuídas no mercado. Já as pandemias disseminam-se e aniquilam em semanas ou meses, não aguardando pacientemente o surgimento da vacina requerida.

Mais, no âmbito do referido modelo reactivo, quando os surtos virais irrompem desponta um massivo investimento financeiro em investigação e

desenvolvimento, brota uma actividade frenética laboratorial a nível global e sobrevém enorme boa vontade, tudo no sentido de criar a vacina mágica. Tal sucedeu, nas últimas décadas. Exemplos: Sars-CoV-1, Mers, Zika, Ébola e agora o Covid-19.

Infelizmente, quando os surtos virais amainam, o investimento financeiro necessário para levar a bom porto o processo de criação da vacina é desviado em função do advento de outras prioridades. Ou seja, o trabalho de investigação e desenvolvimento executado aquando da crise sanitária é frequentemente arquivado quando tal crise se extingue, sendo apenas retomado «se e quando» vírus similar desponta.

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Sejamos realistas. O investimento – vultuoso, moroso e repleto de riscos – indispensável para a investigação e desenvolvimento de medicamentos, leva a que o sucesso da indústria farmacêutica dependa da venda de medicamentos para tratamento de doenças generalizadas e persistentes. Comercialmente, melhor que investir em vacinas de uso temporário é investir em vacinas como, por exemplo, a Gardasil, a vacina contra infecções por Vírus do Papiloma Humano (HPV) que levou cerca de 20 anos a chegar ao mercado, mas que desde 2006 gera mais de um bilião de GBP por ano.

A questão inultrapassável é que o modelo reactivo não funciona atempadamente em época de crise. Tendo isso presente, findo o surto de Ébola na África Ocidental, em 2016, vários líderes mundiais colaboraram no estabelecimento da Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI), sediada na Noruega e financiada por governos e fundações, como o Wellcome Trust.

O objectivo de tal entidade é, precisamente, manter de forma contínua a actividade de investigação e de desenvolvimento relativa a doenças potencialmente epidémicas, ainda que não haja qualquer surto, bem como criar plataformas de tratamento aplicáveis a múltiplas variantes do vírus.

Mas esta entidade, e outras similares, não consegue fornecer uma vacina à escala pandémica, porque os laboratórios e as universidades com os quais colabora não têm capacidade física para tal.

Por conseguinte, entram em jogo, necessariamente, parcerias com os grandes laboratórios farmacêuticos, entidades essas que têm infraestrutura para produzir as doses necessárias para erradicar uma pandemia – fixando, todavia, preços que podem não permitir acesso generalizado.

Não é difícil concluir que o actual modelo reactivo deve ser substituído por um modelo proactivo. O combate deve ter início antes do aparecimento do vírus mortífero e não pode cessar quando o vírus se extingue. O combate deve ser permanente e a responsabilidade de financiamento pela crucial actividade de investigação e de desenvolvimento em causa deve recair no Estado e não apenas em entidades sem fins lucrativos.

Esperemos que a gravidade do presente surto gere a devida reforma no que toca ao financiamento referido. Lembremos os falecimentos já sofridos, mas para quem gosta de números notemos que se se tivesse investido uns milhões para que a vacina contra o SARS tivesse sido concluída, se teria poupado muitos biliões a nível mundial.

Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual. 

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